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O historiador e o cotidiano das memórias

Rio de Janeiro, 15 de agosto de 2021.

Luciene Carris*


Duas pessoas conversavam na padaria sobre os atuais acontecimentos do país, sobre a crise política e econômica, e a falta de ética de muitos políticos brasileiros. Um deles era do sexo masculino, um pouco mais velho e mais maduro também, refletia sobre as escolhas tomadas que o conduziram a passar por algumas dificuldades atuais. Em meio ao café e o pão de queijo, em meio às pessoas que entravam e saiam, ao burburinho daquele ambiente tomado por diferentes tipos humanos e vozes, a conversa tomou um outro rumo, ganhou ares mais intimistas e nostálgicos. Do outro lado da mesa, ali sentada uma moça ouvia atentamente cada palavra dita, observava minuciosamente a linguagem silenciosa daquele corpo, daquele franzido da testa, do olhar disperso e triste, bem como a forma pela qual aquele homem se sentava e como a intensidade da voz se alterava, se tornava mais grave quando o fato narrado assumia uma condição um pouco mais melancólica.




Crédito da imagem: Freepik.


Descendente de portugueses, aquele indivíduo não poupou esforços para comparar a situação política brasileira com a da Europa pós-Segunda Guerra Mundial. Uma catástrofe se aproxima, vislumbrou. Muitas dessas reflexões se deviam a sua história familiar. Os pais portugueses viveram um país arrasado. Se hoje consideramos questionável o trabalho infantil, possuímos leis um pouco mais rígidas como o Estatuto da Criança e do Adolescente, seu pai ainda menino começou a trabalhar em um pequeno hotel em troca de comida e de um lugar seguro e quente para dormir à noite. A decisão estava tomada, não havia outra possibilidade, pois perdeu muitos amigos, que, como ele, dormiam nas ruas. A temporada de inverno era tenebrosa naquelas terras sem abrigo e calefação. Aquilo era uma situação muito comum, sem trabalho, sem renda, sem casa, muitas pessoas viviam em situação de rua, dizia ele sobre o seu pai. A perplexidade despontou quando enumerou as diversas qualidades do nosso país e do nosso povo, que não vivenciou algo tão abrupto e perigoso como uma guerra daquela proporção como aquela que ocorreu no continente europeu, assim, indagou “como chegamos neste estado?”


Nas lembranças daquele homem mais maduro, uma outra bem marcante foi um outro trabalho realizado pelo seu pai. Um menino franzino que possuía as características físicas necessárias para adentrar naqueles tonéis de vinho para limpar e raspar a sulfa ou sulfito de vinho, o nome mais conhecido da substância química dióxido de enxofre. É bem verdade que o elemento é associado a causa de muitas das enxaquecas dos amantes de vinhos. Mas durante a Segunda Guerra, a sulfa foi utilizada como uma espécie de cicatrizante em razão das suas qualidades antioxidantes. Depois dos sucessivos episódios e as dificuldades no outro lado do Atlântico, seu pai atravessou o oceano e chegou ao Rio de Janeiro como muitos patrícios. Assim, recebido por um parente já bem instalado por estas bandas, por aqui permaneceu e construiu uma família e um negócio, vez por outra retornava para visitar a sua terra pátria. O pai octogenário, apesar da idade, ainda possui ânimo suficiente para o trabalho e poder de decisão sobre os negócios da família.


Depois de ouvir tudo atentamente, a moça concebeu aquela narrativa como uma película de um filme em preto e branco. Como historiadora, traduziu parte daquela fala, um misto de sentimentos que atravessa os hiatos entre a confidência e o desabafo, inserindo um pouco da liberdade poética que o ensaio ou crônica permitem, algo que foge um pouco do rigor acadêmico sem perder a legitimidade do ofício do historiador, esse fiel contador de histórias.


A perspectiva que se abateu veio da leitura de um texto do historiador e musicólogo italiano Alessandro Portelli, uma das referências notáveis para os estudos de História Oral. Apesar daquela conversa não ter o rigor, tampouco a intenção de uma entrevista para uma pesquisa, é inegável que para muitos historiadores, alguns aspectos do ofício permanecem impregnados nas observações sobre o cotidiano, como determinadas narrativas podem afetar e trazer inúmeras reflexões, até quem sabe novas histórias, pois “no plano textual, a representatividade das fontes orais e das memórias se mede pela capacidade de abrir os campos das possibilidades expressivas”.


Assim, a partir de uma conversa numa tarde qualquer se abriu caminhos e visões para repensar planos de ação e expectativas sobre a vida. Assim, a informalidade das palavras ditas pode produzir efeitos e reelaborações sobre o nosso papel no mundo e isso é transformador. Como disse Portelli, é inevitável não ocorrer uma troca, é um estado de aprendizagem, mas mais do que isso, possibilita ir mais longe “escrever livros onde estão vozes e, através de nós, através de nosso poder político, acadêmico, cultural, através de nossa atividade científica ou de publicação, jornalística ou o que seja, esta palavra privada e quase nunca ouvida, dos pobres, dos excluídos, dos marginais se torna parte do discurso público, se torna fonte histórica”. Ao fim e ao cabo, constato as inúmeras possibilidades que as cenas adversas do cotidiano podem ser narradas e recontadas, muito embora impregnadas pelas subjetividades individuais.


Luciene Carris é historiadora (UERJ).


Referências:

PORTELLI, Alessandro. “História oral e poder: uma conferência no Brasil”. Conferência no XXV Simpósio Nacional da ANPUH, Fortaleza, 2009. Disponível em https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/mnemosine/article/view/41498/pdf_183 Acesso em: 15 ago. 2021.

_________. A filosofia e os fatos. Narração, interpretação e significado nas memórias e nas fontes orais. Tempo, Rio de Janeiro, v. 1, n. 2, 1996, p. 59-72.


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