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Foto do escritorKênia Aquino

O eterno 14 de maio de 1888

São Paulo, 16 de maio de 2022.

Kênia Aquino*


Gostaria de começar esse texto comentando algo pessoal que nada tem a ver com 13 de maio. E ao mesmo tempo tudo tem a ver com 13 de maio. Quando recebi o convite para fazer essa escrita, hesitei. Muitas vezes minha voz foi escutada e lida como a voz da raiva, então é natural que haja uma hesitação antes da exposição. Sobre isso menciono Audre Lorde em seu poema “A Litany for Survival”:


“E quando falamos temos medo

De nossas palavras não serem ouvidas

Nem bem-vindas

Mas quando estamos em silêncio

Ainda assim temos medo

É melhor falar então

Lembrando

Sobreviver nunca foi nosso destino”


Quando a poetisa fala sobre não ser nosso destino sobreviver, ela fala diretamente sobre a situação da população negra. E para nós negros brasileiros, a data 13 de maio deveria representar a libertação de todo sistema escravocrata, e a permissão para que pudéssemos seguir nossas vidas com plenitude.



Audre Lorde. Crédito da imagem: Poetry Foundation.


Acontece que a Princesa Isabel não fez nenhum favor ao nosso povo, ela fez um favor a si mesma, à corte, ao legado dela, ao legado de seus pais. O Brasil seria uma das últimas nações no mundo todo a abolir a escravatura. O que na época já era lido no resto do mundo como atraso, uma atitude provinciana que destoava das grandes nações.


Mas afinal o que te ensinaram sobre 13 de maio, o dia da abolição? Como foi a tua descoberta a cerca dessa data? O que a escola que você frequentou te ensinou?


Disseram que Isabel foi uma princesa libertadora e heroína? E Você acreditou?


Me surpreenderia se você tivesse duvidado disso na época da escola, porque veja bem, nem eu que sou ativista, militante, “milituda”, feminista preta, membro de movimentos negros, co-fundadora de coletivo preto, que teve o atrevimento de se autointitular “@AeroPreta – Preta e Aeromoça, Respectivamente”. Nem mesmo eu desconfiei da bondade da aclamada princesa Isabel na época da escola. Precisei de anos e anos, lendo e pesquisando, escutando alguns dos meus mais velhos, participando de atividades diversas com foco em negritude para perceber o óbvio: O Plano de abolição não era para privilegiar os pretos. O plano sempre foi para benefício do povo branco.


A lógica dessa afirmação é simples, e pode ser respondida com uma pergunta:


O que os negros puderam fazer no dia 14 de maio de 1888?


Naquela manhã, ao acordarem libertos, o que eles poderiam fazer para que se mantivessem vivos, alimentados, com moradia, saudáveis e seguirem LIVRES?!


Sem ter onde morar, sem ter educação, sem um emprego, sem alimentação, e sem NENHUM apoio do país e de políticas de reparação, como você caro amigo, acredita que meus ancestrais sobreviveram?


E aí eu questiono um pouco mais: Como estamos sobrevivendo desde então, se seguimos muitas vezes nas mesmas condições de 13 de maio?! Que dia é hoje? Será que 14 de maio de 1888 realmente já terminou ou seguimos vivendo eternamente o dia após a abolição?


O plano era simples: Libertem a todos, e eles não sobreviverão. Em pouco tempo eles pedirão para retornar aos engenhos, as plantações, e à Casa do Senhor que lhes alimentava e dava condições de sobrevivência. E essa foi a cruel realidade de muitos pretos. Eles permaneceram no mesmo local, nas mesmas condições e servindo ao mesmo senhor. Trocar seu trabalho por um prato de comida e um teto sobre a cabeça parecia melhor do que a sarjeta ou a prisão por furtar comida, ou cometer outros delitos em busca de subsistência.


E para você, o que significa trabalhar? Você trabalha para comer, ter um teto e vestimenta? Com seu trabalho, o que mais você consegue além disso? Pergunto, pois, até hoje em 2022 sabemos que a maior parte da população preta segue trabalhando com o mesmo objetivo que os pretos de 1888: trabalhamos para seguirmos VIVOS, para termos o básico e nada além disso. Não somos os grandes detentores de posses e riquezas, não possuímos a maior parte das terras do Brasil, tampouco somos os donos de grandes empresas que passarão de geração a geração. Isso tudo, é sabido, faz parte da vivência das pessoas brancas no Brasil.


Entendo se você é uma pessoa branca e se sente desconfortável lendo isso. A proposta desse texto não é trazer conforto, nem desconforto, embora o segundo seja inevitável! Tenha certeza de que não é confortável para nós pretos, escrevermos sobre algumas de nossas dores, lutas e sobre a desigualdade racial brasileira. A proposta do texto é trazer a verdade sobre essa data através da ótica de uma mulher preta, nascida no segundo estado mais racista do Brasil.


Gostaria de poder escrever sobre 13 de maio através de uma outra perspectiva, gostaria de poder escrever que nessa data nós umbandistas celebramos o dia de Pretos Velhos! E se você sabe do que eu estou falando, um salve aos galhos de arruda que nos abençoam, um salve aos grisalhos cabelos e a fala mansa dessas entidades de luz.


Se você não sabe do que eu estou falando, é imprescindível que eu utilize uma frase do poeta Emicida para que você tenha noção do poder deles: o galho de arruda que um Preto Velho usa para benzer equivale a uma floresta inteira.


Então caro amigo, quem sabe no próximo ano eu volte a escrever sobre 13 de maio, falando somente sobre os amáveis pretos velhos? Quem sabe no próximo ano eu tenha conseguido tirar de dentro de mim essa sensação de que desde 1888 estamos vivendo o mesmo dia, todos os dias! Os pretos seguem trabalhando pelo prato de comida, pelo teto e pelo direito de sobreviver. E não sou eu quem diz isso, são os dados e estatísticas do IBGE, são as pesquisas e a realidade exposta na nossa sociedade adoecida e racista.


O que eu posso dizer com certeza é que você, assim como eu, pode tentar mudar isso.


Comece refletindo: o que você tem feito para mudar essa realidade?!



Referências:

LORDE, Audre. A Litany for Survival. Disponível em: https://gentlyblown.wordpress.com/2014/01/12/audre-lorde-uma-litania-para-a-sobrevivencia/. Acesso em 10 de abr. 2022.

Quilombo aéreo. Disponível em: https://www.instagram.com/voonegro/. Acesso em 05 de abr. 2022.


*Kênia Aquino é Comissária de voo atuando enquanto Chefe de cabine, Graduada em Comércio exterior pela Uniasselvi, pós-graduanda em Direitos Humanos, Responsabilidade social e cidadania global pela PUC-RS. Idealizadora da página Voo Negro e co-fundadora do Coletivo Quilombo Aéreo. Atua como Produtora na Malê Afroproduções e é membro fundadora da Odabá Associação de Afro Empreendedorismo.


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