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  • Foto do escritorCarlos Eduardo Pinto de Pinto

O dia em que a Nova República invadiu minha TV

Rio de Janeiro, 01 de outubro de 2022.

Carlos Eduardo Pinto de Pinto*



Em 1989, a Rede Globo exibiu a minissérie República, dirigida por Walter Avancini, como parte das celebrações do centenário da instauração do regime republicano no país. Era uma espécie de sequência de Abolição, grande sucesso do ano anterior em comemoração pelos cem anos da assinatura da Lei Áurea. Ambas eram parcerias com uma produtora independente, modelo inédito até aquele momento, já que a Globo tinha por princípio exibir novelas e minisséries produzidas exclusivamente na casa.




Crédito da imagem: Palácio do Tribunal Superior Eleitoral.


Na ocasião eu tinha 12 anos e era um adolescente fascinado por filmes, novelas e séries “de época”. Vivia em estado de inocência, acreditando que o passado era sempre melhor – mais puro, limpo, elegante, agradável – que o presente. E, claro, estava em polvorosa com possibilidade de “ver” como tinha sido proclamada a República no Brasil. O período de exibição se estendeu entre 14 e 17 de novembro, abarcando o dia do centenário – 15 de novembro.


No dia 14, assisti ao primeiro capítulo embevecido com o modo didático com que os eventos eram apresentados. Tinha muita informação e pouco drama, mas não me importei com isso – queria que chegasse logo a próxima noite para continuar a acompanhar a trama envolvendo militares, civis positivistas, nobres e um “povo” de que faziam parte poucos negros (para onde teriam ido os ex-escravizados de Abolição?). Às 22h30 do outro dia, estava diante do aparelho de TV ávido pelo segundo episódio, que se iniciou e logo foi interrompido por um plantão jornalístico sobre as eleições. Ah, sim! Detalhe importante: não por coincidência, este foi o dia em que brasileiras e brasileiros foram às urnas para escolher o novo presidente, depois de um jejum de 21 anos imposto pela ditadura civil-militar.


Tudo bem, pensei, era justo atrasar um pouco a série para saber quem estava na frente depois de iniciada a apuração. Passaram cinco minutos, dez, trinta... e o plantão não acabava. Lá pelas tantas, o âncora disse algo de que nunca me esqueceria: Hoje, a Velha República dará lugar à Nova. Era fato: eu ficaria sem meu segundo episódio. E sem o terceiro, e sem o quarto...


Até hoje não sei o que ocorreu – a Rede Globo cancelou a exibição da série ou passou para um horário muito mais tarde, inacessível para mim? E a frase do âncora continuava a reverberar: Hoje, a Velha República dará lugar à Nova. Alguma coisa muito grave estava acontecendo ali. Claro que eu sabia o que significavam eleições – na família e na escola o clima eufórico era evidente: tinha gente apaixonada pelo Collor; muitos, como eu, com esperança de ver Lula-lá, enquanto outros exibiam orgulhosos o lenço vermelho de Brizola no pescoço. Contudo, foi só naquela noite em que a Nova República alterou minha programação televisiva, que senti – mais do que entendi – o peso do momento.


Trinta anos depois, já como professor de História da UERJ e orientando uma monografia sobre a série, finalmente pude ver todos os episódios! Por certo sem nenhum traço da inocência dos meus 12 anos, mas, ainda assim, me divertindo. Foi instigante detectar as correntes historiográficas, identificar os atores sociais privilegiados e os menosprezados e, sobretudo, relembrar as tensões que atravessaram o momento de exibição da série.


Em busca de material que pudesse servir ao aluno como fonte, me deparei com dois intervalos comerciais da série, originalmente gravados em VHS e convertidos em arquivos digitais disponibilizados no YouTube.


Um tem pouco mais de um minuto e exibe o fim de um episódio do Globo Repórter sobre a Queda do Muro de Berlim – ocorrida em 9 de novembro, uma semana antes – e o início da minissérie, com oferecimento d’O Estado de São Paulo, “há cem anos fazendo história”, e da Mesbla, “100% brasileira em 100 anos de República”.


O outro vídeo, de aproximadamente 13 minutos, apresenta uma chamada para o Fantástico, propaganda do Carlton, do Credireal, do OMO, do Banerj, de Tostines – “vende mais porque é fresquinho ou é fresquinho porque vende mais?” – da trilha sonora da novela Tieta, de um aparelho de som Gradiente, do Diners Club e do whisky Teacher’s. Impressionante como o horário – ou o período? – era disputado, com campanhas caras e longas! Porém, o mais importante ainda estava por vir: um plantão sobre a apresentação do 24º Boletim do TSE com o resultado de 64,28% das urnas, após 48h de apuração. Collor e Lula já se mostravam como os primeiros colocados, com Brizola em terceiro, com pouca diferença em relação a Lula (Carlos Monforte, o âncora que comenta o resultado, faz questão de enfatizar que apenas 30% das urnas do Rio Grande do Sul haviam sido apuradas e que isso talvez determinasse quem, de fato, disputaria o segundo turno com Collor – e alguma coisa em seu tom de voz me faz desconfiar de que ele estava torcendo contra Lula...).


Ao me deparar com os vídeos, fui imediatamente transportado para o dia em que a Nova República invadiu minha TV. Quantos vetores estavam por trás daquele acontecimento! Perceber a contiguidade das eleições de 1989 e a queda do Muro de Berlim, tendo em vista o que esse fato representou em termos de reconfiguração da política internacional como símbolo do fim da Guerra Fria, deixa mais explícita a importância dos projetos que estavam em jogo naquele pleito: o neoliberalismo de Collor, a nova esquerda de Lula e a velha esquerda de Brizola. Em qual Nova República a Rede Globo e as empresas que lotavam seus intervalos comerciais apostariam?


Hoje, às vésperas de eleições tão ou mais aguardadas que as de 1989, e com Lula na disputa novamente – e eu ainda cantando Lula-lá, “sem medo de ser feliz” – me pergunto como o cotidiano dos meninos de 12 anos será afetado por esse evento. Que memes serão marcantes? Quais dancinhas do TikTok? Qual série da Netflix terá sua fruição interrompida por esta já nem tão Nova República?


Carlos Eduardo Pinto de Pinto é Professor Adjunto do Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Atualmente, é Coordenador Adjunto do Programa de Pós-Graduação em História (PPGH-UERJ). Possui bacharelado e licenciatura em História pela UERJ (2001), mestrado em História Social da Cultura pela PUC-Rio (2005) e Doutorado em História pela UFF (2013). Autor, entre outras publicações, de A capitalidade em disputa. Escreve romances, contos e poemas, utilizando o nome literário EDUARDO CHACON. Em 2019, publicou o romance A perna de Sarah Bernhardt, pelo Kindle/Amazon (e-book).

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