Toronto, 17 de março de 2023.
André Sena*
Dedico o presente texto
aos jovens pesquisadores
Elizeu Santiago Tavares de Souza
e Antônio Marcos Dutra da Silva.
Há por parte de alguns pesquisadores brasileiros que conheço, o recente e muito bem vindo esforço de se produzir um original repertório do pensamento político brasileiro, a partir do estudo criterioso de pessoas que durante seus anos de vida pública tornaram visíveis suas ideias acerca de nossos vizinhos sul-americanos, de nossos parceiros internacionais e da maneira pela qual o Estado brasileiro estabeleceu, desde a Independência de 1822, os “caminhos diplomáticos”, parafraseando o embaixador Tarso Flecha de Lima, pelos quais o Brasil forjaria seu papel como global player.
Crédito da imagem: Blog Cidadania e Cultura.
O que haveria talvez de mais valioso neste tipo de trabalho de pesquisa, seria a confirmação da importância que a história das ideias, ou que uma certa história intelectual possui na compreensão de movimentos objetivos, que ao fim das contas darão forma concreta aos meandros logísticos e diplomáticos dos países no cenário mundial. Lembro-me ainda com certa nitidez do importante trabalho Intellectual History as History, publicado em 2005 por Joseph M. Levine, a partir de um fortuito estudo que desenvolveu sobre a obra do historiador britânico Robin George Collingwood. Levine afirma a história intelectual enquanto ferramenta objetiva, quando não essencial, na elaboração historiográfica. Ideias podem extrapolar, portanto, o produto subjetivo e abstrato da mente criadora, tornando-se ao lado dos fatos, processos e tramas humanas um componente da própria narrativa histórica.
Minha proximidade circunstancial e passageira ao grupo de pesquisa, que há quase 10 anos atrás iniciou este trabalho, me permite afirmar que a lista de nomes é longa e muito marcada pela diversidade, contemplando personagens que vão do Visconde de Itabaiana a Lima Barreto, sem esquecer grandes conhecidos de todos nós, como José Bonifácio, Visconde de Taunay, Joaquim Nabuco, Rio Branco, Carvalho Moreira, e tantos outros que contribuíram para os primeiros e médios contornos de nossa vida internacional.
Não me recordo, contudo, de ter visto o nome de Eduardo Paulo da Silva Prado na lista, embora ele possivelmente já tenha sido garfado por um dos pesquisadores que compõe a força-tarefa que vem aos poucos consolidando o campo de pesquisa que convencionou-se chamar de “pensamento internacional brasileiro”. A contribuição de Eduardo Prado, nesse sentido, é absolutamente inconteste. Inicialmente, talvez, pelo seu livro de viagens, de título homônimo, que relata um olhar pessoal pelos lugares por onde passou e atuou como diplomata nos últimos anos da Monarquia. Entretanto nada é mais valioso e merecedor de uma análise de fôlego sobre Prado e sua crítica política ao sistema internacional (especialmente seu ferrenho alerta a propósito da busca pela hegemonia dos Estados Unidos) do que A Ilusão Americana, publicada pela primeira vez em 1895, e rapidamente proibida por uma República essencialmente não republicana, como a que se originou na quartelada de 1889.
O livro assustou, e em menos de uma hora de seu lançamento foi proibido e retirado de circulação. “Retirado, antes de ser lido”, como afirmaria Rui Barbosa em desagravo à Prado, anos depois. Em uma página infeliz de nossa história republicana, em que nomes ligados ao ancien régime brasileiro eram vistos como suspeitos e perigosos, a análise de Eduardo Prado, sobre uma possível aproximação do Brasil e de seus vizinhos ao gigante do norte, aparecia como uma provocação carente de ser silenciada. Não havia espaço naquele momento para ideias ácidas, que pusessem em xeque os primeiros movimentos de um claudicante e ainda desorientado governo de natureza militarista e supersticiosamente (me perdoem o paradoxo) positivista. É Prado quem dispara, em um prefácio a edição posterior, seu desafeto pessoal: “este despretensioso escrito foi confiscado e proibido pelo governo republicano do Brasil. Possuir este livro foi delito, lê-lo, conspiração, crime, havê-lo escrito.”
É uma crítica assumida em relação ao entusiasmo que as elites republicanas brasileiras começam a desenvolver por Washington que dá o tom da obra, considerada anátema por Floriano Peixoto e seus generais de antanho. Ardente defensor da então recentemente extinta Monarquia brasileira, o autor de A Ilusão Americana recusa-se a admitir a ascensão dos Estados Unidos como um fait accompli, depositando sua segurança conservadora no velho e aparentemente sólido consórcio de poderes que formavam desde 1815 o Concerto Europeu. Ter lido recentemente as memórias de Stefan Zweig que seriam publicadas em 1945 sob o título de O Mundo de Ontem, me ajudou muito a compreender a perspectiva de Eduardo Prado em A Ilusão Americana. Aquilo que grandes historiadores internacionalistas como Edward Hallet Carr chamariam de Macro-Sistema Europeu, ainda era na virada do século XIX uma representação segura das relações de poder no sistema internacional, se comparadas a uma nação que ainda se reconstruía em 1895, da tragédia da Guerra Civil, ocorrida há então apenas três décadas.
A confusão estabelecida por Eduardo Prado, entre o que chama de mero entusiasmo de repúblicas sul-americanas e um movimento americanista cada vez mais real era, portanto, um movimento intelectual tão natural quanto legítimo de sua parte, bem como seus temores por uma possível atitude submissa do Brasil com relação aos Estados Unidos, reconhecidos por ele como um ator internacional fundamentalmente traiçoeiro. Para tanto, Eduardo Prado realiza em A Ilusão Americana uma análise histórica da política exterior dos Estados Unidos, o que definitivamente o inclui como objeto de pesquisa no campo do pensamento internacional brasileiro.
O autor levanta, por exemplo, dados importantes acerca do aceno norte-americano para o reconhecimento de D. Miguel como Rei de Portugal, aprofundando o risco de instabilidade do Primeiro Reinado no Brasil, ao mesmo tempo em que questiona as reais possibilidades de aplicação da Doutrina Monroe pelos Estados Unidos, ao analisar a ocupação das Malvinas pelo Império Britânico, sem qualquer mobilização em termos de hard-power americano para impedi-la. Se a discussão acerca das Malvinas e da soberania dos Estados da América do Sul vem sendo cada vez mais reaquecida entre os historiadores sul-americanos, em A Ilusão Americana, de Eduardo Prado, ela já está presente e evidente.
Além disso, Prado busca discutir elementos domésticos da história então recente dos Estados Unidos, apresentando estudos próprios sobre temas como a Questão do Alabama de 1869 (Alabama Claims), contencioso entre os Estados Unidos e a Inglaterra, imediatamente posterior à Guerra de Secessão, e resolvido apenas mediante arbítrio internacional em 1872. Como se isto não fosse suficiente, Prado denuncia em seu livro o que entende como a “invasão da Flórida” de 1818, definida por ele como uma das mais claras evidências do expansionismo americano. Além disso, utiliza o termo “intrusão americana”, ao abordar a anexação da República do Texas, processo protagonizado por Sam Houston e John Tyler em 1845, e que implicou no deslocamento de populações indígenas inteiras na direção do México, um dos maiores dramas humanitários do Hemisfério Ocidental no século XIX.
Um dos pontos altos de A Ilusão Americana nos mostra a percepção crítica sofisticada de Eduardo Prado na virada do século XIX sobre a maneira pela qual os Estados Unidos enxergavam a comunidade de repúblicas sul-americanas à qual o Brasil acabava de aderir. Com um tom provocador que beira o sarcasmo, Prado chama atenção para a fragilidade brasileira, ipso facto sul-americana, diante do surgimento de um perigoso hegemon ao norte do continente, que olhava com certo desprezo para seus parceiros hemisféricos.
Nos Estados Unidos, a palavra América significa a parte do novo continente que obedece ao governo de Washington. Respeitam os americanos a soberania da Inglaterra no Canadá e, por todas as outras nações, há, nos benévolos, numa grande indiferença e nos outros, um sentimento de acentuada superioridade que é feito de amor-próprio e de desprezo pelos sul-americanos. Basta dizer que, entre os norte-americanos, é motivo de chacota haver países como o México, Venezuela, Colômbia e um outro que conhecemos, que têm a petulância de se intitular Estados Unidos... Isto parece-lhes de um cômico irresistível.
A Ilusão Americana, que chegou a provocar o cancelamento de seu autor, seria posteriormente reconduzida as estantes das livrarias e bibliotecas brasileiras, e digerida por leitores que gradualmente esposavam as ideias de Prado com relação ao imperialismo norte-americano, e especialmente ao Brasil como um de seus alvos. Mas a inicial República brasileira mostrou-se incapaz de lidar com contraditórios e contrapontos, o que desconfio ser ainda um desafio republicano para os dias de hoje no Brasil. Com efeito, a obra de Eduardo Prado deve figurar como um registro analítico e historiográfico da maior importância acerca do impacto que as relações Brasil-Estados Unidos causaram sobre a vida intelectual brasileira. Sua genialidade deve ser entendida dentro do contexto em que foi produzida, sem o impedimento de que ainda nos dias de hoje possamos saboreá-la e aprender com ela.
REFERÊNCIAS:
PRADO, Eduardo. A Ilusão Americana. Ed. Senado Federal, 2010.
LEVINE, Joseph M. Intellectual History as History. Journal of the History of Ideas. Vol.66 (Apr. 2005).
ZWEIG, Stefan. Autobiografia: o mundo de ontem: Memórias de um europeu. Ed. Zahar, 2014.
MERQUIOR, José Guilherme. De Anchieta a Euclides. São Paulo: É Realizações, 2014.
GIAROLA, Flávio Raimundo. Formação do Brasil e nacionalidade em Eduardo Prado: a ideia de “triunfo nos trópicos” e a polêmica com Luís Pereira Barreto. XXVII Simpósio Nacional de História, ANPUH, 2013.
ARMANI, Carlos Henrique. O Brasil e a sombra dos Estados Unidos: discursos sobre a autodeterminação nacional em Eduardo Prado e Araripe Júnior. Rev. Bras. Hist. 40 (84), Maio-Agosto, 2020.
IDEM. O pensamento de Eduardo Prado e a América hispânica como exterior constitutivo do Brasil em fins do século XIX e princípios do século XX. Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras. Universidade Federal de Pelotas. v. 23, n. 1 (2020).
*André Sena é historiador (UERJ).
Com alegria "degustei" mais um texto deveras importante do meu amigo-irmão André Sena. Traz à baila um personagem importantíssimo: Eduardo Prado. Talvez um dos mais importantes analistas da vida política do Brasil. Monarquista convicto. Advogado, jornalista e escritor. Membro fundador da Academia Brasileira de Letras. Com a proclamação da República no Brasil, em 15 de novembro de 1889, passou a combater, em livros e jornais, os atos praticados pelo governo republicano. E lhe deram espaço para falar, independentemente de seus posicionamentos políticos. Obrigado, mais uma vez, meu bom e velho amigo Sena, por nos trazer um facho de luz da história do Brasil.
Excelente análise!