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  • Foto do escritorLuzimar Soares

Nossa frágil democracia


Guarulhos, 01 de novembro de 2022.

Luzimar Soares*


A História do Brasil é repleta de episódios de rupturas, especialmente rupturas no comando das instituições públicas a nível federal. Essas cessações trazem, a reboque, uma série de implicações em vários campos e, certamente, a democracia é o mais afetado por essas alternações de formas de governo. O século passado foi um período de muitas alterações e altercações. Obviamente que não estou me referindo somente ao Brasil, afinal, vivenciamos duas guerras mundiais, culminando a última com a utilização de bombas atômicas, e um número enorme de pessoas mortas de uma só vez, dentre outros desfechos.


Crédito: Freepik.


Ao fim da Primeira Guerra, uma forma de administração tomou conta de muitos países, pautados por uma série de pensamentos e sustentados pelas ideias de supremacias brancas. Nações do “Velho Mundo” entraram em regimes de exceção, endureceram as regras administrativas e passaram por ditaduras. Os dois modelos dessas ditaduras que mais reverberaram e causaram impacto mundialmente foram o italiano (fascismo) e alemão (nazismo). O crescimento dessa forma de governar, bem como a crença de que eram seres superiores, além de outros fatores, levaram o mundo a submergir na Segunda Guerra Mundial.


Obviamente, esses dois parágrafos não são nem de longe capazes de falar sobre o que foram as duas grandes guerras, muito menos sobre os dois regimes de governo acima citados. No entanto, abrem o que acredito que pode mostrar sobre o que eu gostaria de falar: a democracia. Cresci no período ditatorial no Brasil. As liberdades eram vigiadas, as censuras estavam em todos os campos. Falar de democracia, ou mesmo de direitos, era algo tão distante que muitos que ousaram enfrentar o sistema foram, no mínimo, torturados. Outros muitos perderam suas vidas. Além daqueles que, no leque das atrocidades, fugiram, mudaram de nome, abandonaram suas famílias ou se exilaram no exterior. Ou seja, os que sobreviveram buscaram alternativas para continuarem vivos.


As sociedades humanas há muito não vivem isoladas, o que significa dizer que os acontecimentos vão sendo passados de país em país, como se fossem ondas do mar. Talvez porque o poder sempre seduz, as ditaduras foram copiadas, seus princípios se difundiram pelas outras nações. Por aqui, vivemos vinte e um anos de terror, espancamentos em universidades, perseguição aos que ousavam se opor aos dirigentes, aos jornais, aos livros, às revistas, às letras de músicas, às peças de teatro, aos filmes, tudo passava por um sensor do governo. Nada podia ser publicado sem que fosse previamente autorizado pelo poder central.


A mão “invisível” do poder se estendeu sobre o povo brasileiro como se tivesse (e tinha) tentáculos em todos os lugares: massacrou, humilhou, torturou, matou, segregou, encarcerou, cerceou, mas acima de tudo, impossibilitou o crescimento educacional do país. Pautado numa filosofia de democracia racial, não investiu em políticas públicas no combate ao racismo, relegou a população pobre e periférica à própria sorte, não se importou se seu povo vivia ou morria.


A abertura política e, por conseguinte, a redemocratização trouxe uma lufada de esperança para todos os grupos subalternos. Acreditou-se que, finalmente, viveríamos dias de democracia, e que as minorias seriam enfim acolhidas. E, nesse acolhimento, encontraríamos um espaço de caminhada mais humana e mais democrática. É bem verdade que conseguimos sim. O que estamos vivendo na atualidade nem se poderia sonhar nos idos dos anos de 1970.


A partir dos anos 2000, entramos, enquanto sociedade, em um novo estágio. O fim do século XX foi pavimentado com direitos preconizados pela Constituição de 1988, a Constituição Cidadã. Nela, os direitos são tratados da mesma forma que os deveres: são de todos e de todas. Portanto, os direitos prescritos na Carta Magna começaram a ser exigidos por todos os grupos. Dessas lutas, nasceu, por exemplo, o politicamente correto.


Obviamente que, para exercer os direitos na sua totalidade, cada cidadã e cada cidadão precisam ceder, ou seja, para as mulheres ocuparem espaços de poder, homens precisam sair. Um exemplo prático é a participação feminina nos espaços políticos. Existe um número determinado de cadeiras nos parlamentos, portanto, se uma mulher entra, um homem precisa sair. Isso gera uma disputa por espaço, por narrativa, além de uma perturbação do status quo. Nossa sociedade, há muito, é decidida por homens, portanto, a presença feminina sempre é uma “perda” de espaço do homem.


Grupos subalternizados que, ao longo da História, estiveram fora dos espaços de poder e de disputa, bem como fora das possibilidades de ascensão social, começaram a querer decidir. Pessoas negras entraram nas universidades públicas, os periféricos adentraram os centros, as ruas foram tomadas por pessoas que sempre se esconderam. Isso gerou desconforto de quem sempre esteve naqueles lugares. Nos últimos anos, como efeito de reação, surgiram frases do tipo: “no meu tempo, não se via esse tipo de comportamento”, “quando as pessoas tinham vergonha na cara, isso não acontecia”.


Hoje, a democracia não pode mais ser medida pelo sufrágio universal, ou seja, não podemos mais pensar se todos têm o direito ao voto, pois essa luta já vencemos. Portanto, o que precisa ser visto é como os espaços são ocupados. A sociedade democrática é a que vai para muito além do Estado, mas as relações como um todo na sociedade, são democráticas. Para Norberto Bobbio, algumas perguntas precisam ser respondidas:


Percebemos que uma coisa é a democratização do Estado (ocorrida com a instituição dos parlamentos), outra é a democratização da sociedade, donde se conclui que pode muito bem existir um Estado democrático numa sociedade em que a maior parte das instituições - da família à escola, da empresa à gestão dos serviços públicos – não são governadas democraticamente. Daí a pergunta que qualquer outra caracteriza a atual fase de desenvolvimento da democracia nos países politicamente já democráticos: é possível a sobrevivência de um Estado democrático numa sociedade não democrática?


Olhando para nossa sociedade atualmente, percebo grandes tensões. Ainda que legalmente sustentados por uma Constituição que prevê a convivência democrática e o respeito aos direitos e à igualdade, convivemos com uma elite que não abre mão de seus privilégios nem um milímetro. Portanto, ocupar esses espaços e fazer valer a constituição perpassa por transformarmos o político em social e ocuparmos os lugares, ainda que, para isso, precisemos de muita luta e embates epistemológicos, teóricos e práticos. Talvez assim consigamos transformar a sociedade brasileira em democracia real.


Referências:

BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. Uma defesa das regras do jogo. Rio de Janeiro ̸ São Paulo: Paz e Terra, 2022.


*Luzimar Soares é historiadora (PUC-SP/USP).

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