Rio de Janeiro, 17 de maio de 2022.
Luciene Carris*.
Em 1916, na cidade de Salvador, sob a presidência do engenheiro Teodoro Sampaio, aconteceu o 5º Congresso Brasileiro de Geografia entre os dias 7 e 16 de setembro. O evento reuniu um total de 1057 participantes. Paralelo ao congresso, que pretendia traçar um grande painel da geografia pátria, consoante o ideário nacionalista então difundido, promoveu-se uma exposição de cento e quatro documentos, entre cartas, mapas e fotografias e inaugurou-se uma “galeria” com os vultos nacionais e estrangeiros, que mais contribuíram para o desenvolvimento da disciplina no Brasil.

Crédito: Portal Literafro.
Tratava-se de um evento que foi inaugurado no Rio de Janeiro em 1909, que se espalhou para outras capitais, sempre com o apoio do governo e de outras instituições científicas e culturais locais. Ao todo foram realizados dez certames entre 1909 e 1944. Um dos trabalhos mais interessantes publicados nos anais do congresso de 1916 foi o de Manuel Querino, intitulado de “A Raça Africana e os seus costumes na Bahia”. Mas quem foi esse intelectual que apareceu com destaque no certame? Aliás, foi elogiado por muitas figuras, como observamos em nota do seu trabalho, como Virgílio de Lemos da Academia Brasileira de Letras da Bahia e José Bonifácio de Andrada e Silva, sobrinho-neto do patriarca da Independência, então sócio do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
Com intuito de recuperar a sua trajetória, apresentamos um esboço com sua breve trajetória. Nascido em Santo Amaro da Purificação, na Bahia em 28 de julho de 1851, Manuel Raimundo Querino foi um intelectual negro, líder abolicionista e pioneiro a registrar a cultura africana na Bahia e a sua contribuição na construção da civilização brasileira. Órfão, a sua educação foi confiada a um professor da Escola Normal da Bahia, onde aprendeu o ofício de pintor. Aos dezessete anos, recrutado para a Guerra do Paraguai (1865-1870), seguiu pelos sertões de Pernambuco e Piauí com o contingente, partindo em seguida rumo ao Paraguai. Como dominava a escrita e a leitura, acabou não sendo enviado ao combate, passou a servir em um batalhão no Rio de Janeiro até 1870.
Decidiu retornar a Salvador em 1871 para aprofundar os seus conhecimentos, ao mesmo tempo em que trabalhava como pintor. Iniciou os seus estudos em inglês e francês no Colégio 25 de Março. Participou da criação do Liceu de Artes e Ofícios em 1872 e da Academia de Belas Artes em 1877, distinguindo-se entre os demais alunos com várias medalhas. Tornou-se professor de Desenho Industrial no Colégio dos Órfãos de São Joaquim e do Liceu.
Ingressou na Sociedade Libertadora Sete de Setembro fundada em 1869. No ano seguinte assinou o Manifesto Republicano de 1870, propalando os ideais republicanos e abolicionistas. Colaborou no periódico a Gazeta da Tarde, onde publicou artigos defendendo a extinção da escravidão. Fundou os periódicos A Província (1887-1888) e O Trabalho (1892). Envolveu-se também na criação da Liga Operária Baiana em 1876. Com o advento do regime republicano criou o Partido Operário, logo após assumia o cargo de Conselheiro Municipal em duas legislaturas (1891-1892 e 1897-1899). Em 1893, ingressou na Secretária da Agricultura, Viação, Indústria e Obras Públicas como funcionário público, admitido como auxiliar de desenho. Foi um dos fundadores do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia em 1894 e um assíduo colaborador de seu periódico.
Além das obras didáticas Desenho Linear das Classes Elementares (1903) e Elementos de Desenho Geométrico (1911), publicou outros escritos de cunho etnológico e antropológico. A herança cultural africana foi recuperada oralmente, quando Manoel Querino conversava com os africanos libertos em 1888. Neste rol de trabalhos, podemos citar: Artistas Baianos (1909), As artes na Bahia (1909), Bailes Pastoris (1914), A raça africana e os seus costumes na Bahia (1916), Bahia de outrora (1916), O colono preto como fator da civilização brasileira (1918), A arte culinária na Bahia (1928). Em 1938, o folclorista e sociólogo Artur Ramos editou uma compilação de seus escritos na obra Costumes africanos no Brasil. Por sua vez, o escritor baiano Jorge Amado, inspirou-se em Manuel Querino ao escrever o personagem Pedro Archanjo do romance Tenda dos Milagres lançado em 1969.
Retomando ao seu trabalho “A Raça Africana e os seus costumes na Bahia”, Manuel Querino apresentou um alentado ensaio sobre costumes, hábitos e práticas introduzidas pelos escravos, enriquecido de material iconográfico. O estudo contempla desde a captura dos escravos no interior africano até uma análise crítica sobre a Revolta dos Malês em 1835. Podemos ressaltar que os seus escritos e a sua atuação política antecipam outros estudos posteriores como a de Gilberto Freyre, que passaram a valorizar a cultura negra na história do Brasil. Foi uma voz importante contra o preconceito e a ideia de inferioridade do negro que permeava a sociedade brasileira. Para Querino, (...) o africano foi um grande elemento ou o maior fator da prosperidade econômica do país: era o braço e nada se perdia do que ele pudesse produzir. O seu trabalho incessante, não raro, sob o rigor dos açoites, tornou-se a fonte da fortuna pública e particular (QUERINO, p. 628). Podemos ainda entender o seu texto como uma afirmativa perante um evento de natureza acadêmica e política de âmbito nacional, nas suas palavras, pretendia realizar um protesto contra o modo desdenhoso e injusto por que se procura deprimir o africano, acoimando-o constantemente de boçal e rude. E, assim, Querino afirmou a importância da educação na formação do indivíduo:
Do exposto devemos concluir que, somente a falta de instrução destruiu o valor do africano. Apesar disso, a observação há demonstrado que entre nós, dos descendentes da raça negra tem ocupado posições de alto relevo, em todos os ramos do saber humano, reafirmando a sua honorabilidade na observância das mais acrisoladas virtudes (QUERINO, p. 619).
* Luciene Carris é historiadora (UERJ).
Referências:
CARDOSO, Luciene Pereira Carris. O lugar da geografia brasileira: a Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro (1883-1945). São Paulo: Annablume, 2013.
GLEDHILL, Sabrina (org.). (Re) Apresentando Manuel Querino, 1851-1923. Um pioneiro afro-brasileiro nos estudos do racismo científico. Editora Funmilayo Publishing, 2021.
QUERINO, Manuel. "A raça africana e os seus costumes na Bahia". In: 5º Congresso Brasileiro de Geografia, Anais do 5º Congresso Brasileiro de Geografia, Bahia, Imprensa Nacional, vol. 2, 1916.
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