Rio de Janeiro, 15 de março de 2022.
Luciene Carris*
O bairro da Lapa é um local importante da história do Rio de Janeiro. Se consagrou na memória da cidade como um ponto de encontro de músicos, pintores, artistas, escritores, poetas... o local da boêmia carioca, da malandragem, da prostituição e da música popular. A Lapa se converteu como o coração da vida noturna carioca, no imaginário coletivo se tornou um microcosmo da cidade. Figuras como Noel Rosa, Manoel Bandeira, Antônio Maria, Candido Portinari Heitor Villa-Lobos, Orlando Silva, Pixinguinha, Jorge Amado, Carmem Miranda, Madame Satã, entre outras figuras, frequentavam os clubes noturnos, os cabarés e os botequins da região.
Crédito: Wix.
Um sinuoso logradouro homenageia o médico Joaquim José da Silva (1791-1857), entre a região dos Arcos da Lapa e a Avenida Augusto Severo. A rua já recebeu outros nomes como Rua Nova de Santa Teresa, Rua Doutor Joaquim Silva e finalmente Rua Joaquim Silva. O médico se destacou como fundador da Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro, atual Academia Nacional de Medicina, e integrante da Comissão Central de Saúde Pública, um órgão criado pelo governo para combater o surto de febre amarela, que afligia o Rio de Janeiro desde o final de 1849.
Cerca de quatro mil pessoas faleceram entre 1849 e 1850. O negacionismo se disseminou até entre os membros do Senado, o que parece – atualmente - nenhuma novidade. Uma dessas figuras foi o senador Bernardo Pereira de Vasconcelos, que relativizou a gravidade da moléstia e veio a falecer pouco tempo depois em decorrência do vírus mortal. O certo é que a epidemia se espalhou e afetou toda a cidade. É bem verdade que outras moléstias de tempos em tempos também afligiam o Rio de Janeiro (como a cólera, varíola etc.), que possuía a fama de ser insalubre ou pestilento.
Por volta do final do século XIX, antigos casarões de famílias abastadas cederam o lugar para os cortiços, conhecidos como habitações populares. O aumento da população no Rio de Janeiro na segunda metade do século XIX contribuiu para o problema grave de moradia, em especial no Centro do Rio, onde se localizava as principais atividades econômicas. A proximidade com o Porto, com os armazéns e com um amplo comércio atraia muitas pessoas em busca de oportunidades de emprego. O Rio de Janeiro se desenvolvia e deixava as antigas feições coloniais de lado.
Então, nada mais natural do que procurar uma moradia perto do seu local de trabalho. Estalagens, avenidas, vilas e cortiços eram as habitações populares procuradas pela maior parte da população pobre. A alta demanda por moradias encarecia os preços dos imóveis. Apesar da procura, os investimentos aplicados para melhorar a qualidade das habitações eram reduzidos, o que colaborou para a má fama dessas habitações, consideradas insalubres e sujas.
Os donos dessas construções em sua maioria eram de origem portuguesa, e atuavam como pequenos comerciantes, lojistas, artesãos ou pequenos industriais, até moravam em tais espaços próximos de seus “inquilinos”. Trabalhadores como marinheiros mercantes, alfaiates, costureiras, doméstica, barbeiros, sapateiros, conviviam ao lado de outras figuras de conduta questionável para a sociedade da época.
Antigo cortiço na rua Joaquim Silva, atualmente bar e restaurante Cortiço Carioca.
Crédito da imagem: Ronaldo Mendes.
De uma maneira geral, os cortiços possuíam áreas comuns como cozinha, tanques para lavar roupa, banheiro, corredor e pátio. Famílias inteiras viviam empilhadas em cômodos pequenos. Em razão da alta aglomeração em tais espaços e a incidência periódica de muitas doenças, os cortiços foram condenados ao desaparecimento e apelidados de “cabeça de porco”, o nome do maior cortiço localizado na área central, na rua Barão de São Félix, com cerca de 2 mil pessoas, então demolido em 1893 pelo prefeito Barata Ribeiro.
Antigo Cortiço convertido no bar Cortiço Carioca, Rua Joaquim Silva.
Crédito da imagem: Max Rebello.
Apesar da destruição de muitas dessas construções, ainda hoje é possível encontrar essas habitações no Centro e em outras localidades, especialmente, antigos casarões abandonados e sobrados se transformaram em moradias coletivas. Não por acaso, a habitação popular foi alvo da pena do escritor Aluísio de Azevedo, que revelou no romance O cortiço, publicado em 1890, a triste realidade das pessoas simples que moravam em um cortiço no Centro do Rio de Janeiro. Além disso, antigas habitações populares foram convertidas em estabelecimentos comerciais como bares e restaurantes, a exemplo do Cortiço Carioca, cuja construção original é de 1895.
Fachada do Cortiço Carioca, Rua Joaquim Silva.
Imagem cedida por Max Rebello.
No alvorecer do século XX, a reforma urbana idealizada entre 1902 e 1906 pelo prefeito Pereira Passos abrangeu a região da Lapa. Muitas casas populares que existiam sob os Arcos da Carioca foram removidas. Ruas foram abertas como a Avenida Mem de Sá e o lugar ganhou ares afrancesados. Um lampadário esculpido pelo artista Rodolfo Bernardelli foi instalado em frente ao Grande Hotel da Lapa, atual Sala Cecília Meireles, em 1905. A antiga Praia das Areias da Espanha foi aterrada dando espaço à Avenida Beira Mar. De todo modo, com a remodelação iniciada por Pereira Passos, houve uma redistribuição da população do Centro que foi atraída para a região da Lapa, aumentando ali a densidade populacional, especialmente para o Morro de Santo Antônio. Então, o problema habitacional não se encerrou.
Outras reformas se sucederam, como a da década de 1920, que pretendia abrir uma via que ligasse a Lapa ao Campo de Santana, o que implicava no desmonte do Morro de Santo Antônio, tal qual ocorreu com o Morro do Castelo. O arrasamento foi iniciado na década de 1950 e finalizado dez anos depois, na gestão de Carlos Lacerda, que manteve intactos o Convento de Santo Antônio e a Igreja da Ordem Terceira de São Francisco. Aliás, a ideia de uma via diagonal foi reiterada em administrações seguintes sem sucesso.
Paralela a uma imagem pejorativa da região da Lapa, associada às mazelas, à pobreza, ao problema das classes perigosas e à desordem, uma “Lapa boêmia” é recuperada (idealizada) pela pena de escritores como Luís Martins, Gasparino Damata, Alberto Deodato e Hernani Irajá. Figuras que frequentaram a região nas décadas de 1930 e 1940, e se tornaram memorialistas ao registrar o período de auge, de construção e de desconstrução daquele tipo de boêmia intelectual, que se encerrou com o aumento da repressão policial no Estado Novo de Getúlio Vargas e o contexto da Segunda Guerra. Além disso, o bairro de Copacabana, na zona sul, passou a ser considerado moderno e cosmopolita, Luxuosos hotéis e boates seduziam antigos e novos frequentadores e inaugurava novos padrões de comportamento, bem como novas formas de sociabilidades.
Escritor e Jornalista Luís Martins.
Crédito da imagem: Museu da TV.
Coube ao escritor e poeta Luís Martins o apelido de “Montmartre carioca” para a Lapa, então um reduto de sociabilidades de uma boêmia intelectual e artística, cuja inspiração era o famoso bairro Montmartre, ao norte de Paris, frequentado por artistas intelectuais como Renoir, Monet e Cézanne, e recentemente imortalizado na película O fabuloso destino de Amélie Poulain (2002). No seu entendimento, a Lapa era uma espécie de “Montmartre verde-amarelo, mistura de Paris requintada e Bahia afro-luso-brasileira”, visitada por intelectuais e artistas modernistas como Di Cavalcanti e o Maestro Villa-Lobos (Velasques, 1994, p. 27).
A feição de Montmartre em miniatura, surgiu, assim, aí pelo início da década de 1920, ou fins da anterior, nos anos da mocidade boêmia de Raul de Leôni, Jaime Ovalle, Ribeiro couto, Di Cavalcanti, etc. Em alguns desses homens, a lembrança desses das felizes perdurou para sempre. A Lapa sublimou-se em imagem de um paraíso perdido (Martins, 2015).
Mas o local ainda resistiu bravamente durante décadas de degradação. Com a idealização do Projeto do Corredor Cultural em 1979, tempos depois com o Polo Novo Rio Antigo em 2005, ocorreu uma valorização do patrimônio histórico, bem como uma renovação cultural e urbana do Centro. Sem dúvida, muitos problemas ainda se perpetuam.
A Lapa continua no imaginário de muitos cariocas como um reduto boêmio, atraindo turistas nacionais e estrangeiros. Vale recordar que na época de Luís Martins, se localizavam na rua Joaquim Silva a Pensão Imperial, a Pensão da Chouchou e o apartamento do pintor Cândido Portinari, entre outros estabelecimentos, como observamos em seu livro de memórias. Nos últimos tempos, com seus bares, restaurantes, hotéis, cortiços, camelôs e a famosa Escadaria Selarón, criada pelo saudoso artista chileno Jorge Selarón, a intrépida rua pode ser considerada como um microcosmo simbólico do Centro, repleto de histórias a serem reveladas através do olhar curioso do seu caminhante .
*Luciene Carris é historiadora (UERJ).
Contato: lucienecarris2016@gmail.com
Instagram: @lucienecarris
REFERÊNCIAS:
CARUSO, Haydée. A ordem e a desordem de ontem e de hoje. Notas etnográficas sobre a polícia na Lapa Carioca. Civitas, Porto Alegre, v. 15, n. 1, p. 66-83, jan.-mar. 2015.
LUSTOSA, Isabel (org.). Lapa do Desterro e do Desvario: uma antologia. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2001.
MARTINS, Luís. Noturno da Lapa. Rio de Janeiro: José Olympio, 2005.
Chalhoub, Sidney. Cidade febril: cortiços e epidemias na Corte imperial. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
VELASQUES, Muza Clara Chaves. A Lapa Boêmia: um estudo da identidade carioca. Tese (Doutorado), Programa de Pós-Graduação em História, UFF, 1994.
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