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Estado de Compromisso: três leituras possíveis sobre a ideia de Boris Fausto

Toronto, 16 de janeiro de 2023.

André Sena*


O conceito de “Estado de Compromisso” tornou-se muito conhecido e estudado por historiadores da minha geração, que se dedicaram aos estudos históricos brasileiros, especialmente sobre o período da década de 1930. Criação conceitual de um dos maiores historiadores brasileiros ainda vivos, Boris Fausto, o conceito foi apropriado de maneiras diversas para explicar a performance política e os elementos formadores do Estado no Brasil, posterior à Revolução de Outubro, que dava início a uma nova vida nacional, no primeiro ano daquela mesma década.



Crédito da imagem : Le Compromis de Nobles em 1566. Edouard de Biefve. La tribune de l’Art.


Curiosamente, embora tenha sido criado para um exercício de compreensão quase exclusiva do que se passou no país após a amarração dos cavalos gaúchos no obelisco da Avenida Central, no Rio de Janeiro, seguida da deposição do Presidente da República Washignton Luis Pereira de Souza, o que se convencionou chamar futuramente de Era Vargas, o termo-conceito “Estado de compromisso” ainda serve como um intrigante instrumento analítico acerca da evolução histórica e política do Estado brasileiro nos dias de hoje. Aposto convicto nessa possibilidade.


Recordo-me, que o primeiro contato que tive com esta ideia de Boris Fausto, foi em um texto de sua autoria, que avaliava especificamente o governo provisório de Vargas, especialmente durante o período Constituinte, entre os anos de 1933 e 1934, excetuando, portanto, a tragédia política brasileira de 1937. Boris discutia, no décimo volume do terceiro tomo correspondente ao Brasil republicano, da extensa coleção HGCB, História Geral da Civilização Brasileira, a questão do compromisso, a partir da ideia de um arranjo tácito entre as elites, em nome de uma possível governabilidade pós-revolucionária.


Entretanto, havia em sua análise ainda, o elemento da preparação de um repertório de interesses a serem inseridos na própria agenda governamental, daquele momento em diante, para a qual o novo Estado deveria trabalhar. Uma espécie de éternel retour do diferente, concepção do filósofo francês Gilles Deleuze, que sempre me interessou a fim de compreender o mistério das repetições na História, onde velhos elementos assumem quase sempre novas roupagens, ao mesmo tempo em que não se furtam a incorporar seus objetivos anteriores.


O Estado de compromisso de Boris Fausto, tal como o encontrei no texto do HGCB, apontava para a construção de uma nova realidade política nacional, sem que as velhas questões essenciais e inerentes aos grupos de poder pregressos e às elites econômicas, fossem minimamente desconsideradas. Vargas trazia o novo, com a ajuda do velho, ou melhor, sem dele poder prescindir. O compromisso, o arranjo no topo da pirâmide, era, portanto, imperativo para que a revolução que trouxe a oligarquia gaúcha para o Catete se sustentasse.


A burocracia do Estado daqueles anos, expressava uma nova forma externa de poder, resultante do protagonismo de clivagens políticas novas, tanto no sentido geracional e etário, como no da modernidade ideológica; tratava-se de grupos detentores de projetos ainda em construção, mas incapazes de acomodarem-se nas rédeas do poder, sem ceder ao apelo sempre contundente daqueles que apenas aparentemente lhes precediam. O conceito de “Estado de compromisso” com o qual nos presenteou Boris Fausto, nos dá sempre a impressão de que quando se discute os processos de desenvolvimento histórico do Estado brasileiro, o passado constitui-se apenas como um elemento impressionista ou de segunda ordem, do ponto de vista analítico. Qualquer semelhança com o conceito de “lei de ferro das oligarquias”, de Robert Mitchels e sua teoria das elites, pode não ser mera coincidência.


A ideia de um reajuste nas relações internas, que sejam capazes de dar conta de novos tempos históricos, e ao mesmo tempo comprometam velhas e novas gerações políticas, em uma dialética de conciliação, para que a conservação de antigas conveniências se some à novas demandas de governabilidade e poder, traduz e amplia com boa clareza o que Fausto nos deseja comunicar ao discutir o período constituinte dos primeiros 4 anos da Era Vargas, e posteriormente todo o período, quando ele reapresenta o termo na obra A revolução de 1930. Historiografia e História. Se em Sociedade e Política (1930-1964), Boris Fausto discute a questão de um conluio entre velhos e novos donos do poder, para que o governo do país de fato se desenrole, aqui a percepção de um reajuste ultrapassa a questão de um simples acerto de contas, dando lugar a possibilidades de reformulação e enquadramento de novas possibilidades, mesmo que acumulando velhos vícios.


Finalmente, chegamos a uma terceira possibilidade de abordagem deste conceito de Fausto, a partir de um olhar mais original, quando não inteiramente diferente: a ideia de um Estado de compromisso a partir da intencionalidade do comprometimento com o tecido social, objeto da própria governabilidade. Muitos dos colegas com os quais discuti nos anos 1990 o conceito de Estado de compromisso, que ora abordo neste breve texto, preferiam dar a esta ideia de um Estado intencional uma roupagem semântica intervencionista: poderíamos então perceber a questão do compromisso, segundo Fausto, como uma vocação do Estado brasileiro (a partir do contexto varguista mas não exclusivo a ele) interventora na vida política, social e econômica nacional.


O preço para a complacência com os interesses e a pressão exercida, especialmente por setores econômicos tradicionais, seria o da tolerância desses mesmos setores a novas formas de governabilidade, provocadoras, arrojadas, modernizantes, mas jamais perigosas o suficiente, a ponto de neutralizar velhos projetos de hegemonia. A ideia de compromisso aqui, assume uma plasticidade radical, que se distancia da mera questão do arranjo, comprometimento ou reajuste de relações, dando lugar a performances de governança mais concretas, que nos primeiros anos do governo Vargas chamaram atenção de toda a sociedade brasileira, como por exemplo, o aparecimento de um Estado muito mais empresário do que meramente regulador, ou com a construção de uma nova agenda política em torno das relações de trabalho, com a ampliação e incremento de direitos.


Boris Fausto nos brinda com um conceito que poderá nos ajudar a entender ainda nos dias de hoje, ou em tempos recentes, algumas questões relativas à historicidade do Estado brasileiro e a sempre presente ideia de uma necessária “correção de rumos”, toda vez que a política de compromisso tende, ou a se afastar dessa vocação histórica, detectada por Fausto, ou a deformá-la, sem a apresentação de uma alternativa efetivamente sedutora. Por esta razão, o conceito de Estado de compromisso continua, no meu entender, atual e interessante, tanto como ideia, quanto como ferramenta de estudos para entendermos ainda mais o Brasil de nossos tempos.


REFERÊNCIAS:

FAUSTO, Boris. Sociedade e Política (1930-1964). O Brasil Republicano (1889-1964), Tomo 3. Coleção História Geral da Civilização Brasileira, 2007.

________. A revolução de 1930. Historiografia e história. São Paulo: Brasiliense, 1987.

HOLLANDA, Cristina Buarque de. Teoria das Elites. Editora Zahar, 2011.

CARVALHO, José Murilo de. Pontos e Bordados. Escritos de História e Política. Ed. UFMG, 1998.


*André Sena é historiador (UERJ).

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