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  • Foto do escritorAntonio Edmilson Martins Rodrigues

Entre lembranças do futebol entre João do Rio e Lima Barreto

Rio de Janeiro, 10 de novembro de 2023.

Antonio Edmilson Martins Rodrigues*



Leitores queridos. Desculpe importuná-los com minhas lembranças. Mas está chegando a hora das memórias. O que lerão a seguir são recordações que se misturaram na minha cabeça com meus estudos e viraram uma grande confusão. Assim, se entenderem que não devem continuar lendo, tudo bem. Para aqueles que continuarem com a leitura apresento duas possibilidades. Lerem o arranjo inteiro ou em partes. A primeira parte é constituída por, como diria Machado de Assis, ruminações. A segunda, mais interessante, é sobre o futebol e as visões de João do Rio e Lima Barreto sobre esse esporte. Proponho que comecem pela segunda.




Na aquarela acima do artista Alcides Oliveira, Antonio Edmilson é imortalizado em um ambiente boêmio, saboreando uma taça de vinho enquanto ouve a melodia de um samba tocado na clarineta. O ambiente é pontuado por um quadro na parede, que presta tributo ao América, mesclando a paixão pelo esporte e a boêmia carioca. Crédito: Alcides Oliveira.



Torcedor do América, que talvez poucos conheçam e tenham ideia do que era a paixão pelo “diabo rubro”, sempre me preocupei mais com o espetáculo do que com o time em si. Garoto, assisti o Flamengo ser campeão do Super Campeonato, observando com êxtase o pequeno Babá, ponta esquerda. Lembro-me bem das aventuras do Almir, o pernambuquinho e de sua morte em Copacabana. Até fotonovela sobre ele eu, contando a rivalidade entre Vasco e Flamengo através da luta entre Almir e Pavão, eu li.


Vi Edu, irmão de Zico, dar ritmo ao América. Senti a emoção de ver o Santos ganhar do Milan no Maracanã, sempre atento ao espetáculo. Muitas vezes observei Nelson Rodrigues nas cadeiras cativas com o seu rádio no ouvido. Tudo isso porque tive o privilégio de morar do lado do Maracanã. Convivi com cantores e compositores depois dos jogos no Siri daquele tempo, comentando os resultados.



Crédito da imagem: Site Oficial do America Football Club.


Assisti às resenhas esportivas da Facit e outras com o Saldanha e o Scasa. Ouvi Ari Barroso narrando, mas também Oduvaldo Cozzi, Jorge Curi, Doalcei Camargo, Waldir Amaral e outros. Vivi um tempo de futebol das multidões comparado com os 6000 que assistiram a inauguração do novo campo do Flamengo em 1916. Compareci aos jogos do Bangu, do Madureira e até do Campo Grande em seus estádios. Era o campeonato carioca.


Minhas lembranças são sensacionais e foram de certo modo registradas em meus times de futebol de botão. Mas, o momento mais interessante no que se refere ao futebol, pasmem, foi na Universidade. Num dos encontros da Associação de Professores e Pesquisadores de História na Uerj, graças ao interesse e força do amigo e na época aluno Raul Milliet, organizamos um simpósio sobre futebol e música. A história que começou com uma conversa de corredor deu samba e plantamos um rebu na Academia com a presença de Nilton Santos, Afonsinho, Adalberto, Paulo Amaral, a professora Maria Yeda, Carlos Monte, Carlos Didier e muitos outros.

Recordo-me, em especial, do olhar atônito de meu filho mais novo, botafoguense, que almoçou com toda essa turma e sem saber muito das histórias vivenciou um momento único. É fato como esse que animam a gente. Até hoje, várias pessoas me perguntam sobre o evento seja porque assistiram ou porque alguém contou sobre o encontro histórico e mágico. Essa magia é o traço fascinante do futebol.


Isso me levou a pensar em dois personagens que são cariocas e que de um modo ou de outro estiverem no debate do futebol e que merecem a nossa atenção e com eles termino esse arranjo de coisas que já parecem memórias como “Meninos eu vi” e deixo vocês com os cronistas.


Rever as crônicas de João do Rio cruzando-as com as de Lima Barreto é um evento comparável a um jantar com a pessoa amada tal o frisson e as surpresas que ambas nos apresentam. E quando se trata do assunto futebol a coisa se torna admirável.


Foi numa dessas releituras que me despertou interesse os modos opostos de tratamento dado pelos cronistas à arte do futebol. Cronistas do social, envolvidos com a rua e admiradores das coisas urbanas no processo de modernização da cidade do Rio de Janeiro, ambos tiveram seus olhares voltados para a moda do futebol. Tomei para este pequeno arranjo uma crônica de João do Rio de 1916 e outras de Lima Barreto escritas entre 1918 e 1919.


Na crônica de João do Rio há um elogio rasgado à nova arte do futebol quando comenta as atividades do Flamengo, mostrando, de um lado, sua atitude de torcedor do “mais querido” e de outro, o frenesi provocado pelo jogo de futebol na cidade do Rio de Janeiro.


O Clube de Regatas do Flamengo para ele foi o instrumento através do qual se popularizou o esporte bretão, destacando-o como aquele que formou as novas gerações que glorificaram o exercício físico para a saúde do corpo e da alma. Para ele, tudo começou num tempo em que se dedicar aos esportes era uma “extravagância”, as mães colocavam as mãos na cabeça quando um dos meninos arranjava um haltere. Estava perdido. Rapaz sem pince-nez, sem discutir literatura dos outros, sem cursos nas academias, “era homem estragado”.


Para João do Rio, o Flamengo foi o núcleo de onde se produziu a “avassaladora paixão pelos esportes”. Isso começou pelo remo que fez surgir além do Flamengo, o Boqueirão do Passeio, o Misericórdia, o Botafogo e o Icaraí. As regatas tomaram conta da cidade e os intelectuais voltaram seus olhos para elas. Olavo Bilac dedicou o poema Salamina aos esportes, mostrando como essa batalha deu aos gregos a vitória e abriu caminho para o enaltecimento dos esportes.


Por toda a cidade se viam corpos malhados, mudando a paisagem urbana. E o Flamengo era para João do Rio, o desencadeador dessa nova moda. Sua crônica vem para render homenagens ao Flamengo por um evento que estimulava o futebol: a inauguração de seu novo campo. A descrição da chegada do cronista ao evento num movimento que quase esmaga o cronista no objetivo de chegar à arquibancada, assusta e diverte pela emoção. Depois de se sentar, ao olhar em volta, é possuído de uma dúvida: “não soube se devia olhar o jogo do campo em que Galo triunfa ou se devia comover-me diante do frenesi urbano da multidão”.


A constatação diante da dúvida é decisiva: “Não! Há de fato uma coisa séria para o carioca – o futebol”. E continua: “Mas absolutamente nunca vi o fogo, o entusiasmo, a embriaguez da multidão assim. Só pensando em antigas leituras, só recordando o Coliseu de Roma e o Hipódromo de Bizâncio”.
A descrição da cena avança no sentido de apresentar os elementos que a compõem com a eleição das gerais como o espaço das “gentes apinhadas”, gritando e movendo-se, sacudindo os chapéus. A arquibancada fecha a descrição da cena como o lugar dos “patrícios” do circo romano: “...formidável corbelha de belezas vivas, de meninas que pareciam querer atirar-se e gritavam o nome dos jogadores, de senhoras pálidas de entusiasmo, entre cavalheiros como tontos de perfume e também de entusiasmo”. E o Flamengo venceu de quatro a um.
A conclusão da crônica exalta o entusiasmo: “À porta, 500 automóveis buzinavam, bufavam e sireneavam. E as duas portas do campo golfavam para frente do Guanabara mais de seis mil pessoas arrasadas pela emoção, apaixonada do futebol”.

Posso comentar a crônica de diversas maneiras. Tradicionalmente, chamando atenção para o futebol como arte das elites ou como espaço de reconhecimento da modernidade da cidade. Entretanto, sinto uma vontade enorme de esclarecer os dados contidos na crônica como modo de mostrar a excelência de um João do Rio ao captar com sensibilidade o acontecer cotidiano da cidade, além de torcedor do Flamengo que envolvido pelo mesmo frenesi que aponta, toma o jogo de futebol talvez como um evento mítico e ficcional.


A crônica trata da inauguração do novo estádio do Flamengo na rua Paissandu em frente ao Palácio Guanabara e ao campo do Fluminense. O estádio pertencia ao Clube Paissandu que deixou o futebol em 1914. Então, a família Guinle, proprietária do terreno, alugou ao Flamengo entre 1915 e 1932. Recorrendo aos jornais da época, notei que o resultado de quatro a um não ocorreu no dia quatro de junho de 1916 e a crônica pode ser uma referência ao jogo entre Flamengo e Fluminense que foi quatro a um, mas o Flamengo ainda não tinha alugado o campo. No jogo da inauguração, em quatro de junho de 1916, o Flamengo jogou contra o São Bento de São Paulo e venceu de três a um. Mas não importa nada disso. É a exaltação do imaginário que é o assunto principal; é a multidão em frenesi que orna a crônica, levando ao elogio.


Vou voltar os olhos para Lima Barreto e seu incômodo com o futebol. Na primeira das duas crônicas examinadas, escrita em 15 de agosto de 1918 com o título de “Sobre o football”, inicia-a com uma declaração na qual define a sua posição de não gostar de esportes, entretanto, isso não o retira do debate, uma vez que como era um leitor inveterado de jornais, lia também as notícias esportivas. Relata que lhe chamou atenção um jogo de futebol entre o Rio e São Paulo e os “títulos espalhafatosos” dos jornais que para ele faziam muito barulho por nada.


Entretanto, alguma coisa lhe chamava atenção nas notícias. Eram as críticas dos paulistas à vitória dos cariocas, acusando o juiz de ter sido o causador da derrota. Para Lima Barreto, o acontecimento não valia o gasto de tinta e papel. E esse será o tom da crônica: “o bafafá” em torno de uma coisa que não era séria. A coisa se torna complicada quando recebe jornais de um amigo paulista, diretor de dois jornais paulistanos e ao passar os olhos por eles Lima Barreto observa o envolvimento dos brasileiros com o futebol quando vê o título de uma das notícias esportivas “Cariocas X Paulistas”. Isso faz com que ele se recorde do que havia lido no jornal carioca e fica pasmo de ver como a celeuma em torno do jogo continua quase se transformando em guerra civil.


Reconhece, por fim, que embora não goste de futebol ele tomou conta do público mais popular e o calor do jogo fazia as pessoas esquecerem os seus modos, pois senhoras elegantes da sociedade abriam o berro em baixo calão.


O futebol se transformou na moda do tempo e surgiam “as torcedoras” que acompanhavam aos berros os seus times e os jogadores favoritos, enfurecidas com os juízes, os adversários e os maridos, muito perto do que foi o bom tempo do futebol. A comparação que colocou em cena duas visões distintas tinha uma convergência quanto ao futebol como moda que não deixaria de existir.

Hoje, longe desse tempo, olhamos para o futebol como arte? Pense nisso, leitores.




Referências:

RESENDE, Beatriz; VALENÇA, Rachel (Orgs.). Lima Barreto: Toda Crônica. Rio de Janeiro: Agir, 2004. 2 vols.

RIO, João do. “A hora do futebol” In: Pall-Mall Rio: o inverno carioca de 1916. Rio de Janeiro: Villas Boas, 1917.



*Antonio Edmilson Martins Rodrigues é historiador e professor (UERJ/PUC-Rio).



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