Gustavo Martins de Almeida*
Rio de Janeiro, 01 de fevereiro de 2022.
Um dos fatores de valorização da obra de arte é, obviamente, a autenticidade. Seja pela possibilidade de falsificações, seja pela dúvida decorrente de ser obra incomum de um artista, muitos fatores colaboram para a certeza da criação original, tais como a declaração do artista, ou de herdeiros, certificados de autenticidade, expertise, perícias técnicas, catalogues raisonées.
Para o admirador e colecionador a imagem de um quadro – não estou cuidando aqui de esculturas - constitui o objeto do desejo e da apreciação, que satisfaz o patrimônio emocional e valoriza o material.
Mas poucas pessoas conseguem ver, nos museus, pelos critérios habituais de exposição, o verso, o avesso do quadro. Ali estão indícios do tempo, esboços de assinaturas, sinais da criação, como se fosse um complemento da tela exibida. O chassis de suporte da tela geralmente contém alguns complementos ou indícios e etiquetas que atestam a exposição da obra em outros museus ou mostras específicas.
Estive em dezembro no MASP e vi parte de seu belíssimo acervo, emoldurado em placas de cristal, suportadas por cavaletes de cimento, como genialmente concebidos por Lina Bo Bardi, que também decidiu colocar a etiqueta com o autor e nome da obra no verso, para que, segundo ela, as pessoas apreciassem o quadro pelo conteúdo e não pelo autor. No entanto, uma certa frustração por, na maioria das vezes, o verso dos quadros estar coberto por placas de material opaco. Assim, em algumas obras, consegui identificar e fotografar etiquetas que expunham o seu trajeto, como carimbos de passaporte, e apresento algumas.
No verso doDi Cavalcanti , “Cabeça de Mulher”, de 1973, consegue-se ver uma pequena plaqueta de patrimônio que indica ter sido propriedade do Banco Central, mas o restanteestá coberto por um vidro canelado. Qual teria sido o trajeto do quadro, pintado 3 anos antes da morte do autor. Alguém teria quitado uma dívida com essa obra?
Atualmente, no Paço Imperial, no Rio de Janeiro, está exposta belíssima e praticamente inédita coleção do Museu do Ingá , que pertenceu ao BEG, depois Banerj. Possivelmente dívidas foram saldadas com a dação dessas obras.
Já o Flavio de Carvalho, Nu Feminino Deitado, de 1932, parece ter passado pela Bienal de São Paulo de 1983, como consta de um etiqueta que se consegue enxergar pelo vidro canelado.
E por último, Andrea Mantegna, São Jerônimo Penitente no Deserto, esteve na National Gallery, em Londres, na Exibição Mantegna and Bellini, entre 2018 e 2019, como se colhe da etiqueta colada no verso da obra, que aparece por cima da ficha do MASP.
Não se trata de crítica ao critério da genial Lina Bo Bardi, mas o fato é que a informação é um dos ativos mais valiosos hoje em dia. A possibilidade de acesso ao verso dos quadros é uma rara oportunidade de apreciação de sua origem e trajetória, além de contribuir para a correta identificação e verificação de autenticidade.
Tive acesso a imagens do verso do quadro Mesa de Bar, de Di Cavalcanti, 1929, do acervo de Gilberto Chateaubriand, em comodato no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, e cujas fotografias foram tiradas pela equipe de museologia da instituição.
A visão completa do verso do quadro permite identificar seu trajeto pelas etiquetas coloridas, que atestam o pedigree e os locais para onde a obra foi emprestada. Em ordem cronológica vê-se que a obra passou pelo:
-Museu de Arte Moderna de Nova Iorque (MOMA), na mostra Artistas Latino-Americanos do Século XX (sem data) ;
- Centro Georges Pompidou, Arte América Latina (sem data)
-Museu de Arte Moderna de São Paulo, Retrospectiva Di Cavalcanti 1971;
-Bienal de São Paulo de 1985;
-Museu Amado Miguel, Sevilha, Artistas Latino-Americanos do Século XX, 1992;
- Kunsthaus Zurich, 1992
- Bienal Brasil Século XX, 1994
-Museu de Arte de Belo Horizonte, Expo Bienal Brasil Século XXX 1994 a 1995;
Também foi intenso o trajeto do icônico Farol, de Anita Malfatti, pintado em 1915:
As etiquetas no verso do quadro apontam que ele foi exposto em:
-Museu da FAAP 1924
-Bienal de San Pablo 1963
-Museu de Arte Contemporânea de SP 1977;
-Fundação Bienal de São Paulo, Tradição e Ruptura, 1984/1985
-Museus de Milwaukee, Phoenix, Denver, Washington e Mimai, na Exposição Mulheres artistas Latino-Americanas 1915-1995, entre 1995 e 1996
Cada empréstimo das obras certamente foi representado por meio de contrato com estipulações sobre seguro, transporte, prazo, etc. Essas condições compõem a engrenagem do delicado e valioso mercado de arte. Técnicos, peritos, restauradores, museólogos, curadores, toda uma coletividade mobilizada para preservar o patrimônio artístico, no caso pertencente a museus, e que mobilizava multidões, agora afastadas dos Museus por conta da Covid. Tive a oportunidade comentar em seminário com o Museu Hermitage que antes da Covid o público se dirigia aos Museus estáticos, enquanto agora os Museus é que visitam o público, confinado em “home/offices”.
As instruções para a montagem dos cavaletes de Lina Bo Bardi foram adaptadas a tecnologia do século XXI pelo MASP, que reabilitou o projeto de exposição da arquiteta em 2015 (tinham sido suprimidos em 1996), conforme matéria da Folha de São Paulo de 17.12.1996 (Folha de S.Paulo - Cavalete de vidro gera polêmica no Masp - 17/12/1996 (uol.com.br).
Abaixo a forma de montagem dos cavaletes, conforme exposto em artigo publicado pela Arch Daily (Concreto e vidro: Os cavaletes de Lina e um novo jeito antigo de exibir arte | ArchDaily Brasil).
O público tem agora duas oportunidades de apreciar o verso dos quadros. Seja presencialmente pelo emprego – quando possível – de material translúcido no verso das obras expostas no MASP e, quando o quadro tiver algum detalhe chamativo, em exposições on line, com a exibição do seu verso. Salvo engano o Google Arts – projeto fabuloso – não contempla esse modo de exibição.
Em 2010 o sensível artista Vik Muniz montou exposição na qual reproduzia em 3 dimensões, como esculturas apoiadas no chão, os versos dos quadros que pelos quais sempre foi fascinado. O verso de “Lição de anatomia”, de Rembrandt, “Monalisa” de Da Vinci, “Noite Estrelada”, de Van Gogh, “Moça do brinco de pérola”, de Vermeer, entre outros foi reproduzido como se a obra estivesse inerte, casualmente acomodada contra a parede de um estúdio. (Vik Muniz revela o que há “nas costas” de algumas das pinturas mais famosas do mundo | Hypeness – Inovação e criatividade para todos.)
O quadro é a ponta do iceberg de emoções e técnica conjugadas. Muitas vezes o verso é a elaboração desse conjunto e traz indícios da criação final.
Participei de banca de curso de especialização de perícia de obras de arte, no Rio de Janeiro, e a análise dos fatores físicos do quadro, como chassis, tela, materiais e pigmentos constitui fator essencial para atestar, ou não, a autenticidade da obra.
Em tempo de facilidade de reprodução de material (pigmentos, acabamento,) e de elementos de aparência das obras (assinaturas e estilo) quanto mais dados forem disponibilizados melhor seria o grau de certeza dos laudos.
Por último, o blockchain substitui hoje o rastreamento do trajeto da obra, cujo percurso fica registrado nessa cadeia de dados. Assim, tanto os colecionadores quanto os museus dispõem de meios para identificar o trajeto das obras, elemento de segurança e estética complementar.
Recria-se, então, no século XXI, nova utilidade para o projeto de Lina Bo Bardi.
É o direito ao avesso.
*Gustavo Martins de Almeida é carioca, advogado e professor. Tem mestrado em Direito pela UGF. Atua na área cível e de direito autoral. É também advogado do Sindicato Nacional dos Editores de Livros (SNEL) e conselheiro do MAM-RIO.
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