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Da Imperatriz ao Cafezal: a genialidade estética de Georgina Albuquerque


Toronto, 01 de julho de 2021.

André Sena*



Em uma de suas obras mais famosas, O Retrato de Dorian Gray, publicada em 1891, o escritor e dramaturgo Oscar Wilde fez um interessante comentário sobre a arte da pintura. Diz ele no livro que “um retrato pintado com sentimento reflete muito mais a imagem do artista do que a do modelo retratado.” Com efeito, a reflexão do subversivo libretista de Salomé cai como uma luva para conhecermos melhor a pintura de uma de nossas figuras mais geniais: Georgina Albuquerque.




Não acredito em pessoas que tenham vivido a frente de seu tempo, embora pensar isso sobre Georgina seja mais do que uma simples tentação. Prefiro, no entanto, apostar minhas fichas na possibilidade da existência de pessoas que dentro de seu próprio tempo o tenham corajosamente desafiado. Essa ideia me parece muito mais plausível e certeira, na medida em que são de fato os não conformistas que - individual ou coletivamente - apontam para as transformações que efetivamente farão sentido, dentro de certas condições objetivas, para não fugir ao jargão marxiano.


O teórico e revolucionário russo Giorgi Plekhanov, autor de um tratado riquíssimo sobre o papel do indivíduo na história, levanta essa possibilidade produzindo argumentos intrigantes sobre a construção de espaços possíveis onde indivíduos sejam capazes de imprimir suas marcas, ambientados em uma tecitura histórica que se projeta necessariamente na própria sociedade, mas sem cair em qualquer tipo de chauvinismo ou em armadilhas demasiadamente românticas. Há portanto oxigênio para heróis, dentro de um mosaico social tanto vital quanto criativo.


Georgina Albuquerque era uma dessas pessoas. Desafiou com graça, coragem e arte, a época e o mundo em que viveu e onde produziu, desde fins do Império até a segunda metade do século XX. Nos deixou em 1962 legando ao país um monumental conjunto de obras tão deslumbrantes quanto estilisticamente diversas.


O quadro Sessão do Conselho de Estado, ainda hoje um de seus trabalhos mais conhecidos, remete-se a uma infância onde a mãe lhe iniciou na arte do desenho. Mas também faz jus às aulas que teve, ainda muito jovem, com o artista italiano Rosalbino Santoro. Pintor fascinado pela paisagem brasileira, Santoro foi de certo o primeiro a reconhecer em Georgina Albuquerque o gênio que mais tarde viria a público.


Sua passagem pela Europa na primeira década do século XX a colocou em contato com técnicas francesas que ainda bebiam na fonte do Impressionismo, movimento que sempre exerceu sobre Georgina imenso fascínio. O contato que teve com os grandes mestres da pintura francesa, tais como Paul Gervais e Adolphe Decheneau, assim como o treinamento ao qual se submeteu na Academia Julian, ativa no ambiente artístico francês desde 1867, fortaleceram na entourage artística brasileira (majoritariamente masculina) a ideia de que ela seria uma assinatura irrefreável em nossas Belas Artes. O convite que recebeu em 1920 para ser a primeira mulher a compor um júri acadêmico no Brasil é uma prova inconteste disso.


A circulação de artistas e intelectuais brasileiros pelo mundo, especialmente no ambiente atlântico, foi e continua sendo um elemento essencial para a inserção brasileira nas trocas de capital cultural e científico internacional. Georgina Albuquerque voltará ao Brasil disposta a ocupar o espaço que desejar em uma sociedade sistemicamente machista e marcada por uma transição republicana ainda em seus primeiros contornos.


O centenário da Independência do Brasil em 1922 foi para ela uma janela de estrelato, com a apresentação do já mencionado quadro Sessão do Conselho de Estado. Nesta obra, o expectador tem uma espécie de encontro marcado com o pioneirismo da pintora no gênero da pintura histórica, sendo a nossa primeira mulher a debruçar-se sobre o tema, desafiando nomes já consagrados como Victor Meirelles, Pedro Américo ou Rodolfo de Amoedo.


As perspectivas feminina e feminista do quadro são igualmente irrefutáveis e inebriantes. A futura diretora da Escola de Belas Artes do Brasil nos apresenta aqui, em pleno centenário, uma narrativa sobre a independência onde o Ipiranga é projetado para a periferia histórica, e a cena central é protagonizada por uma mulher no comando da nossa emancipação nacional. A luz do quadro, suas cores, bem como a centralidade da cena, tudo está inteiramente espelhado sobre a Imperatriz Leopoldina de Habsburgo, que não apenas dá as cartas do jogo, como também é observada com admiração e reverência por seus Conselheiros. O quadro ainda hoje emociona, e é uma das joias raras da pintura histórica brasileira, servindo de modelo para telenovelas, filmes e séries de época.



O proletariado feminino será outro tema de predileção de Georgina Albuquerque e me arrisco a dizer que ela foi uma das únicas artistas a contemplar exclusivamente a questão operária feminina em sua época. As obras Roceiras e No Cafezal, ambas de 1930 se destacam nesse sentido.


O retrato da mulher como elemento central da produção fora do espaço doméstico, descontinuando o seio familiar como único espaço possível de representação da mulher, assim como a exaltação da força física feminina no pleno exercício laboral, desafia toda uma tradição que pode ser encontrada, por exemplo, nos braços musculosos de um Cândido Portinari, ao retratar homens no mesmo enredo.


Oscar Wilde acerta mais uma vez: paixão e fala de si. Georgina Albuquerque não apenas merece como precisa ser acompanhada pelo nosso olhar curioso. A bem da verdade, somos nós que precisamos dela, a Lady Dama (outro lindíssimo quadro seu de 1906!) que soube retratar a si mesma, e em alguma medida a todos nós, nas artes de um Brasil ainda apenas superficialmente republicano.


*André Sena é historiador (UERJ).


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