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Cotegipe: o inimigo da Abolição

Toronto, 18 de maio de 2023.

André Sena*


Em reunião de votação no Senado Imperial no dia 13 de maio de 1888, João Maurício Wanderley, o Barão de Cotegipe, somava-se aos 5 senadores que votaram contra a extinção da escravidão no Brasil. Em um discurso, considerado até mesmo por seus amigos inflamado e radical, Cotegipe reduzia a questão da Abolição a um ataque violento ao direito de propriedade. Mais do que isso, o senador e Primeiro-Ministro do Império, um dos grandes exponentes do Partido Conservador brasileiro, entendia a Abolição como um desvio de rumos, além de um perigoso precedente contra a própria ideia de propriedade enquanto tal.



Fonte: Os Divergentes.


Muitas décadas antes disso, outro intrigante personagem histórico conservador do século XIX, Bernardo Pereira de Vasconcelos, impiedosamente chamado por seus detratores de o “Atleta do Regresso”, afirmava algo que o tornaria conhecido e famoso entre os historiadores que apreciam esse período da história brasileira: Não há nada mais conservador do que um liberal no poder. Aplicado à Cotegipe, esse princípio transforma-se em um fragoroso equívoco. No caso do senador imperial que se fez inimigo do abolicionismo, bem como da própria Abolição enquanto passo histórico incontornável, o que se verifica é uma redundante constatação: tratava-se Cotegipe de um conservador efetivamente conservador, naquilo que o termo e a prática trazem de retrógrado e obscurantista, contrastando por exemplo com o toryismo britânico, especialmente em sua roupagem canadense da mesma época, imbuído de um progressismo de matizes conservadoras que ainda hoje fazem nossos olhos saltarem.


O discurso de Cotegipe no Senado intentava desfigurar a assinatura da Lei que declarava extinta a escravidão no Brasil, utilizando um subterfúgio ingênuo e desesperado: fazer-se refém ontológico da prática da propriedade como um valor absoluto, finalizado em si mesmo; segundo alguns, a exemplo de Rousseau, a origem de todos os males, e segundo outros, a exemplo de Bastiat, um direito humano inviolável. Refugiando-se de forma reducionista e embotada nesta última abordagem, Cotegipe abstinha-se da possibilidade de uma percepção humanitária e moral acerca da infame prática escravagista, ignorando o crime que finalmente chegava, juridicamente pelo menos, ao fim no Brasil, depois de séculos de luta de homens e mulheres, negros e brancos, os primeiros especialmente no heroísmo libertário quilombola, os segundos na ora morna, ora efervescente militância abolicionista, nas fazendas e nas ruas das cidades do Império, levando inclusive Províncias importantes, como o Ceará, a desconstruírem o edifício escravista quatro anos antes do 13 de Maio.


O Barão era dono de uma incontestável inteligência política, o que lhe garantiu a sobrevivência no centro do cenário imperial brasileiro por décadas, assumindo cargos públicos importantes ainda como jovem advogado no Nordeste, e posteriormente posições nacionais de destaque, como a prestigiosa pasta da Marinha (por duas vezes!), a das Relações Exteriores (Negócios Estrangeiros), e até mesmo a de líder do Gabinete que levou seu nome e governou o Brasil, entre 1885 e 1888. No início da década de 1870 foi ele o principal redator dos tratados de pós-Guerra com a República do Paraguai, onde atuou de forma absolutamente implacável com os vencidos no conflito. Invertendo o famoso princípio de Clausewitz, Cotegipe atuou no Paraguai afim de assegurar que a política era a continuação da guerra por outros meios.


Nenhum desses traços da biografia profissional de Cotegipe lhe socorreu, quando ele teve de enfrentar a teimosia insuperável de Isabel de Orleans e Bragança, Princesa Imperial que assumia no final dos anos 1880, pela terceira vez, a Regência do Império do Brasil, priorizando uma agenda que contrariava as crenças do Barão em diversos quesitos, especialmente no tocante à prática da escravidão. Afinada com os liberais por um lado e com os abolicionistas por outro (esses igualmente na maioria liberais), a Princesa entendia que a base política para a aprovação da Abolição no Brasil finalmente se consolidava, o que se refletiu nos votos favoráveis expressivos, tanto na Câmara quanto no Senado do 13 de Maio. Para isso, Isabel provocou a queda de Cotegipe, com quem tinha péssimas relações, tanto protocolares como pessoais, especialmente por questões de natureza ideológica, mas também por relações de gênero. Cotegipe a desprezava e a Princesa lhe retribuía na mesma medida o sentimento, criando uma clara estratégia que gradualmente levou a sua demissão e à ascensão de um abolicionista para o seu lugar, inaugurando o Gabinete João Alfredo.


Não apenas a crença de que a Abolição era um crime, mas igualmente o ressentimento, provocado pela capitulação diante da Regente Isabel, coloriu o cinzento discurso anti-abolicionista de Cotegipe no Senado naquele 13 de Maio. A confirmação de pessoas negras como objetos de propriedade vinha ardilosamente combinada à uma preocupação humanitária e ao mesmo tempo econômica. Há no discurso do Barão uma bizarra confusão entre o cuidado com a lesão financeira que sofreria a elite escravocrata e o infortúnio dos “libertos”, deixados à própria sorte, livres por uma canetada irresponsável. Indagava o Barão em 1888, em discurso proferido no Senado Imperial, antes do 13 de Maio, já conformado com a vitória abolicionista nas duas Câmaras:



Qual é a sorte dos libertados, quais os preparativos para que aqueles que abandonarem as fazendas tenham ocupação honesta? Qual é a sorte dos 500.000 ingênuos, que estão sendo alimentados, vestidos e tratados pelos respectivos proprietários em suas fazendas?



Ao mesmo tempo em que expressava suas considerações acerca de como seria um Brasil pós-escravista para a própria população, que fora durante séculos objeto de um modo de produção que as escravizou, Cotegipe denunciava a Lei Áurea como expressão tirânica, mesmo que com aprovação parlamentar, capaz de inaugurar uma era de anarquia no país, oriunda de uma sociedade sem as garantias de propriedade. A instabilidade jurídica e econômica seria para ele o resultado mais óbvio da Abolição, que descontinuava a maneira pela qual a economia imperial brasileira vinha funcionando na maioria dos casos. A miopia de Cotegipe somava-se aos outros 5 senadores que votaram contra a Abolição, e criava uma hierarquia de percepções encabeçada pelo medo da mudança e pela incapacidade de um país capaz de empreendê-la de uma vez por todas. Como conservador brasileiro, preferia o conforto da transformação lenta e gradual, tolerando o atraso como um fator natural, ao mesmo tempo que circunstancial. Melhor isso, do que ceder a urgência moral e política de seguir adiante com a intrepidez necessária e emancipadora que batia às portas do Brasil.



Enfim senhores, decreta-se que nesse país não há mais propriedade. Por meio de um traço da pena, fica decidido que tudo pode ser destruído por meio de uma lei, sem atenção nem a direitos adquiridos nem a inconvenientes futuros!: daqui a pouco se pedirá a divisão das terras (…) seja de graça, ou por preço mínimo, e o Estado poderá decretar a expropriação sem indenização. Este é o país que temos.



Ao declarar sarcasticamente que a Princesa, ao assinar a Lei da Abolição, perderia em breve o trono, profetizando o fim da Monarquia, Cotegipe buscava, quem sabe, ter a última palavra em um embate que durou décadas entre ele e aquela que teria sido a Chefe de Estado de um possível Terceiro Reinado no Brasil. O Barão morreu no mesmo ano da queda do Império, mas antes de ver sua profecia tornar-se realidade. Entretanto, as ideias do Inimigo da Abolição atravessaram os tempos e criaram raízes profundas, em uma República que ainda hoje claudica na emancipação de fato de homens e mulheres negras, livres do açoite da senzala, mas presos na miséria de um país pseudo-republicano e racista como o nosso. Cotegipe ainda vive em muitos corações brasileiros, até mesmo nos mais insuspeitos, tanto fora do poder, como dentro dele, porque apesar da tenacidade da Princesa em desmontar o sistema que o Barão escravocrata defendera de forma tão ferrenha, ainda hoje, apesar da Lei Áurea, nem tudo que reluz é ouro no Brasil.



REFERÊNCIAS:

MORAES, Renata Figueiredo. Uma pena de ouro para a Abolição. A lei do 13 de maio e a participação popular. Dossiê: Inclusões e Exclusões • Rev. Bras. Hist. 33 (66) • Dez 2013.

NASCIMENTO, Carla Silva do. O Barão de Cotegipe e a crise do Império. Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Centro de Ciências Humanas e Sociais, Programa de Pós-Graduação em História, 2012.

Anais do Senado Brasileiro, 1888, livro I. In: Anais do Império - Publicação e Documentação - Senado Federal

CARVALHO, José Murilo. A Construção da Ordem e o Teatro das Sombras. Ed. Civilização Brasileira, 2013.

NEEDEL, Jeffrey. The Party of Order. The Conservatives, the State, and Slavery in the Brazilian Monarchy, 1831-1871. Stanford: Stanford University Press, 2006


*André Sena é historiador (UERJ).



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2 comentarios


alexkappaun
31 may 2023

Ao contrastar a posição do Barão de Cotegipe a dos conservadores ingleses, chega-se à conclusão de que, no Brasil, muitos conservadores são, na verdade, reacionários, o que vale até os dias de hoje. Infelizmente.

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mbbraggio
27 may 2023

Infelizmente, em pleno século XXI ainda temos MUITOS "Cotegipes" mundo afora. Seu texto, amigo Sena, é oportuno e nos remete à reflexões profundas e urgentes.

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