São Paulo, 01 de setembro de 2021
Edinei Pereira da Silva *
A arte, expressão que congrega um conjunto de ações performática e sensíveis aos modos de representação das relações sociais em diferentes momentos da história, não é estanque. Suas nuances, embora não sejam expressivamente latentes, de certo modo se delineiam pelas superfícies dos acontecimentos. Há nessa correlação de fatos e concatenações historiográficas das linguagens (fotografia, pintura, escultura, poesia, música, cinema), o “dizer” para além do dito, o “enxergar” para além do que está posto. O cinema, que a partir daqui nos guiará pelas fronteiras das experiências tecidas pelos sujeitos em constantes interações com instituições e todo aparato que sedimentou os múltiplos caminhos, forja-se num modus operandi repleto de choques, no mundo, assim como no Brasil.
No Brasil, a história do cinema é carregada de tensões. A maneira como essa linguagem perpassa por vários momentos, e/ou é utilizada pelos vários atores nacionais, reflete a complexidade de cada instante. A primeira República se atreveu a utilizar-se das imagens em movimento, não na mesma proporção que as pinturas, para construir uma ideia de nação. Como grande parte da população ainda não sabia ler e escrever, as imagens foram utilizadas em larga escala com esse propósito: “educar”.
No governo de Getúlio Vargas, os Cinejornais logo passaram a fazer parte dessa constituição de valores, quando da apropriação mais incisiva do cinema pelo Estado, sobretudo a partir de 1932, com as “cotas de tela”. Ou seja, considerou-se obrigatório a projeção de filmes nacionais a cada quantidade de apresentações estrangeiras. A sétima arte tinha como propósito, entre outras coisas, o sentido “pedagógico”. Somete para citar alguns exemplos que alicerçou as trilhas desse universo.
Ainda sobre o uso das artes, e a maneira como essas ferramentas foram se aperfeiçoando com o tempo, Walter Benjamin assim nos situa acerca dessa dinâmica:
A obra de arte sempre foi, por princípio, reprodutível. O que os homens fizeram sempre pôde ser imitado por homens. Tal imitação foi praticada igualmente por discípulos, para exercício da arte; por mestres, para difusão de obras; e, finalmente, por terceiros ávidos de lucros [...] (BENJAMIN, 2014, p.13).
Com isso, é possível afirmar que no Brasil temos uma esteira de acontecimentos onde o cinema foi por muito tempo a ferramenta daqueles que objetivavam o lucro, ou cogitaram lançar as bases para a permanência, ou a busca pelo poder. Contudo, outros sujeitos emergiram para também marcar território nesse processo.
Com o final da Companhia Cinematográfica Vera Cruz, em 1954, a arte de resistência passa a conhecer um novo panorama naquela atmosfera. Particularmente naquilo que era pautado pelas ideias do fazer uma arte popular. É importante ressaltar que os idealizadores da Vera Cruz, Francisco Matarazzo Sobrinho e Franco Zampari, representavam uma elite paulistana que procurava se restabelecer por meio da arte, mais precisamente como uma típica cópia hollywoodiana, primeiro com o teatro, depois o cinema. Dessa forma, “... Historicizar seus efeitos é suscitar o que de importante a arte pôde nos fornecer como elemento norteador...” (SILVA, 2021, p. 101). O vértice a partir dessa experiência serviu de instrumento para as correntes subsequentes.
Logo após, o CPC (Centro Popular de Cultura) organizou o teatro, a música e o cinema, com propósitos alinhados com uma arte do povo para o povo. Embora as intensas discussões internas sobre essas performances quase sempre geravam certo desconforto para alguns participantes. Em 1962 surge o Cinema Novo, sustentado pelo lema que se tornou o standard do movimento: “uma ideia na cabeça e uma câmera na mão”. Apoteose daquilo que consubstanciava com a vertente revolucionária, no campo das ideias, assim como no prático.
Em 1965 Glauber Rocha leva para o festival de Gênova sua “Estética da fome”, apresentado durante o congresso “Terceiro Mundo e Comunidade Mundial”, manifesto que denunciava as mazelas sociais ainda enraizadas nos países colonizados. Além disso, colocava como fator primordial para o cinema, sobretudo para os cineastas, a missão de fazer os filmes “gritarem”. Grito que reverberou por alguns anos, de modo que as bases para o cinema crítico foi lançado. Entretanto, após o golpe de 1964, a ditadura civil militar passou a controlar, censurar e asfixiar cada vez mais a arte tida como subversiva.
Nessa esteira de eventos, o ano de 1966 é marcado pela criação do INC (Instituto Nacional do Cinema), e 1969 pela Embrafilmes (Empresa Brasileira de Filmes), ambas com o intuito de tornar cada vez mais inviável as produções críticasao sistema. Todavia, nesse interim, o golpe mais severo aconteceu mesmo em 13 de dezembro de 1968, com a promulgação do AI-5.
Diante de tais acontecimentos, algumas produções foram descaracterizadas na sua essência, que é a crítica. O Cinema Novo, segundo alguns críticos da época, tem sua rota alterada pelas constantes perseguições e censuras. As obras, ao passarem pelo crivo da censura, foram alteradas, e/ou rejeitada completamente. Nesse percurso, outro grupo de cineastas se desloca por outro caminho, e passam a fazer filmes fora dos padrões estabelecidos tanto pelos censores, como pela dinâmica mercadológica em vigor. A perversidade com que a Ditadura Civil Militar agia diante da arte de contravenção, sobretudo do campo cinematográfico, despertou um movimento que ficaria marcado pelas pautas resistentes e periféricas.
O Cinema Marginal inaugura uma nova estética. E impõe uma série de questões que se potencializam a partir da criação e instrumentalização do aparelho estatal, que objetivava asfixiar cada vez mais a arte. Como vimos acima. Mas os meandros para sua imersão nessa resistência surgiu nesse entrecruzamento: crítica ao sistema; marginalidade; subversão.
Crédito: site Papo de Cinema
O conceito Marginal não denota aquele que está excluído, mas remete à ideia de ações periféricas, consubstanciada pelos sujeitos comuns. Aqueles que passaram a escrever nas/as bordas de uma cidade pujante e paradoxal. Para a compreensão do conceito, faz-se necessário uma reflexão das relações sociais naquele momento, assim como perceber o metabolismo das produções dos filmes dessa corrente.
Esse típico cinema, por sua vez, significou as produção de baixo, ou nenhum orçamento. Normalmente os locais escolhidos para que as cenas fossem gravadas, eram as ruas da boca do lixo, reduto de muitos cineastas da época. O quadrilátero mais utilizado situava-se na região do bairro da Luz e suas cercanias, em São Paulo. As imagens fragmentadas, decrépitas, com narrativas desconexas, onde o vômito e a deglutição eram constantes, metaforicamente caracterizam uma sociedade de igual modo distópica.
Para Fernão Ramos, o que caracteriza o Cinema Marginal “é exatamente a utilização desta linguagem num segundo nível, como ‘curtição’ [...] debochada.” (RAMOS, 1987, p.69). Que num certo sentido, dimensiona suas narrativas. Além disso, são potencializadas pelas constantes ironias, de modo que as representações simbólicas tidas como contraponto àquele universo asfixiante são inseridas nos filmes. Seja por meio dos corpos dilacerados, que remetia a tortura, ou do lixo e espaços decadentes, que persistentemente contradizia o chamado “milagre econômico”.
No filme A Margem (1967) do cineasta Ozualdo Candeias, entre outras obras de igual magnitude, há uma série de elementos passíveis de observações acerca do que podemos compreender como sendo as representações dessa marginalidade. Além dos parcos recursos, que obrigou o diretor a realizar o filme em apenas três meses, os espaços ao ar livre, mais precisamente às margens do rio Tietê, fornecia um cenário repleto de casebres, construções abandonadas, barracos, vendedores, carregadores de carroças, catadores, entre outros.
No meu livro “Cinema na Margem: arte, história e subversão no filme de Ozualdo Candeias”, assim menciono a referida obra:
A narrativa de A Margem realça uma estética pouco convencional, na qual a transmissão de suas mensagens era dissonante e fragmentada, se comparada à organicidade da padronização do mercado local [...] Nessa perspectiva, o filme A Margem (1967) compõe o seleto grupo da corrente chamada de Cinema Marginal, da Boca do Lixo [...] (SILVA, 2021, p.77).
A Margem retrata o marginal nas bordas de uma São Paulo contraditória. Os personagens deambulam, caminham em meio aos detritos, atravessam vias e avenidas, capturam subjetivamente as histórias de outros sujeitos, e do seu entorno. Assim como em outros filmes, testemunham e denunciam a perversidade daquele organismo que o sistema teimava em camuflar.
O Cinema Marginal se propagou com mais força entre os anos de 1968 a 1973, e ficou conhecido também como “cinema de invenção”, ou “cinema de autor”, por se tratar de produções em que seu acabamento e mensagem não tinham intervenção de grandes produtoras. O que significa dizer que não estavam preocupados com as questões mercadológicas. Outras obras compõem essa corrente, como: O Bandido da Luz Vermelha (Rogério Sganzerla); Matou a família e foi ao cinema (Júlio Bressane); Bang bang (Andrea Tonacci), Hitler no terceiro mundo (Agripino de Paula), entre outras.
Por fim, a marginalidade cinematográfica reavivada pelas ideias insurgentes desse período, representou a resistência daqueles que negaram a barbárie do aparelhamento da arte. Mencionar seu legado, é historicizar suas imagens, é correlacionar com os fatos do presente, é tratar sobre os aspectos dissonantes de uma época nebulosa. A ação de pensar um mundo controverso serve de baliza para tomarmos posições, e ocuparmos espaços de luta. O Cinema Novo trouxe o lema “uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”, que foi profícuo. Enquanto os Marginais, pelo que pude constatar, levaram a cabo uma frase citada no filme o Bandido da Luz Vermelha: “quando a gente não pode fazer nada a gente avacalha, e se esculhamba”. O fato é que eles fizerem muito, e ridicularizaram.
Atualmente, o governo, estrategicamente retoma o projeto asfixiante dos “anos de chumbo”. A recente tragédia na Cinemateca representa uma das pautas de destruição da cultura no país. Cabe agora, se necessário, as combustões insurgentes de uma luta frontal diante desse descalabro.
REFERÊNCIAS
BENJAMIM, Walter. A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica: Zouk. Porto Alegre. 2012.
RAMOS. Fernão. Cinema Marginal (1968/1973): A representação em seu limite. Ed. Brasiliense. São Paulo, 1987.
SILVA, Edinei Pereira. Cinema na Margem: arte, história e subversão no filme de Ozualdo Candeias. Ed. CRV. Curitiba, 2021.
*Edinei Pereira da Silva é Mestre em História Social pela PUC-SP. ntegra o Núcleo de Estudos em História Social da Cidade (NEHSC) - PUC-SP. Autor do livro “Cinema na Margem: arte, história e subversão no filme de Ozualdo Candeias”, ed. CRV.
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