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  • Foto do escritorAndré Sena

Canadá: um país sem história?

Toronto, 05 de agosto de 2023.

André Sena*


Recentemente conversei com um imigrante que chegou ao Canadá no mesmo ano em que eu e meu companheiro. Nos conhecemos em um estúdio de tatuagem em um bairro boêmio e alternativo de Toronto; em meio nossa conversa ele perguntou para mim o que eu fazia da vida. Ao lhe dizer que era professor e que lecionava em francês ele me olhou com uma mistura de espanto e alívio: “você fala francês?”, indagou-me. Ao responder que sim, ele me disse que era francês e me pediu, em um tom de súplica, se poderíamos conversar na sua língua natal, ao invés de em inglês. Pude ver sua satisfação quando aquiesci; ao mesmo tempo percebi o quanto a língua francesa lhe fazia falta.



Crédito da imagem: Norman B. Leventhal Map Center Collection.


Jean Christophe me confidenciou não gostar do Alto Canadá, nome que ainda hoje se usa para nomear a Província onde tanto eu quanto ele residimos: Ontario. A origem da expressão carrega uma historicidade diretamente relacionada com a derrota dos franceses na Batalha dos Planos de Abraão ocorrida em 1759, e carrega uma marca clara de subjugação do que se entende como o “Baixo Canadá”, região mais bem conhecida por nós como Quebec, além outros territórios adjacentes, como a Terra Nova (Newfoundland), por exemplo, que só se juntaria ao Canadá que conhecemos hoje duzentos anos depois. Algumas traduções para o português vão inclusive piorar a semântica, chamando o Upper Canada de Canadá Superior, e o outro, naturalmente, do seu antônimo.


Os dois Canadás surgiram com uma justificativa administrativa, o que na verdade mascarava uma tática geopolítica tradicionalmente britânica no que se refere às suas colônias: divide and conquer. O Constitutional Act de 1791 cimentou a proposta e dividiu o que ainda não era exatamente um país (ao menos no sentido jurídico e político do termo) em dois imensos pedaços, divididos por um rio, o Ottawa. A iniciativa não durou muito tempo, embora curiosamente ainda hoje encontremos placas e até mesmo instituições que ostentem o termo, como a prestigiosa escola privada de Toronto, Upper Canada College, onde sigo sonhando em lecionar um dia. Dificilmente (me arrisco a dizer que seria impossível) encontrar atualmente qualquer placa no Quebec que ainda se refira ao lugar como Lower Canada.


A pouca durabilidade da divisão (que não explica a ainda resiliente utilização do termo por aqui) deu-se por um momento de inflexão na percepção do Império Britânico acerca da importância estratégica do Canadá como ponto de contenção setentrional ao expansionismo dos Estados Unidos, que por sua vez entendiam essas terras geladas ao norte de sua “fronteira” como uma espécie de 14ª colônia a ser libertada. Essa leitura jeffersoniana do Canadá não era um privilégio yankee: muitos setores políticos e intelectuais (e até mesmo artísticos) do ‘Baixo Canadá’, especialmente do Quebec, entendiam que a sua adesão à Revolução Americana poderia ser um caminho interessante de repudio e ao mesmo tempo descontinuidade do poderio britânico sobre terras outrora francesas e que mantinham (assim como ainda hoje mantém) uma forte tradição francófona.


Há algum tempo participei de um evento na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, discutindo a obra do escritor canadense Louis-Honoré Frechette em uma perspectiva comparada ao nosso brasileiríssimo José de Alencar. Frechette era um dos que apoiaram em uma determinada fase política da sua vida a fusão do Baixo Canadá aos Estados Unidos, e pagou um alto preço político e intelectual por isso.


Até mesmo no período pós-confederado (posterior a 1867), quando o Canadá já era uma entidade política unificada e buscava consolidar uma certa “marcha para o Oeste”, a exemplo dos norte-americanos, essa ideia floresceu, tanto no Baixo Canadá, como em regiões onde a francofonia exercia algum tipo de influência: as pradarias. Um dos melhores exemplos do que estou discutindo é a atual Província do Manitoba, que teve líderes revolucionários de claro matiz francês, como Louis Riel, hoje vulto histórico nacional canadense e figura política praticamente canonizada nas prairies, especialmente nos arredores do tão mítico quanto igualmente histórico Rio Vermelho, que liga a canadense Winnipeg à Dakota do Norte americana. Em seus períodos de exílio, Louis Riel refugiou-se nos Estados Unidos, onde amadureceu suas ideias políticas e os projetos revolucionários que o conduziriam ao cadafalso, acusado de traição, em 1885.


Meu tatuador Jean-Chistophe, desconfortável e insatisfeito com o Alto Canadá, explicou-me a razão de sua desfeita: “Le Canada est un pays sans histoire”, me disse ele afirmando que por aqui a História era sufocada pelo inverno rigoroso, pela natureza gigantesca e pela imensidão territorial. A afirmação do artista, que coloria a minha perna esquerda com uma técnica impecável, não poderia vir mais carregada de um olhar francês sobre o mundo. A terra de Victor Hugo, e especialmente de Jules Michelet, mas também a de Gobineau, ainda hoje se vê como uma espécie de berço da civilização, e pude sentir na fala de Jean Christophe que essa perspectiva estava viva em jovens adultos franceses como ele; algo que nem toda a boemia e cultura alternativa do mundo poderia curar.


Como imigrante, sinto que os new comers (como gostam de nos chamar por aqui) se interessam relativamente pouco pela história canadense, mesmo tendo que realizar uma duríssima prova de história no IRCC (o órgão da imigração) para um dia, quem sabe, tornarem-se cidadãos do país. Minha experiência com o Canadá se dá exatamente no sentido oposto à de Jean-Christophe, mas eu sou um elemento carregado de suspeita, na medida em que nem eu sou tatuador (também não sou francês...) nem ele historiador. Eu vejo (e estudo!) história em toda parte por aqui. O bairro onde moro, por exemplo, foi o estopim de uma importantíssima rebelião ocorrida em 1837 sobre a qual até mesmo o Imperador D. Pedro II comenta em seu diário de viagem a Toronto, 40 anos depois. Para onde olho, história canadense é o que vejo.


Eu, na minha inocência, achei possuir uma solução rápida e eficaz para pelo menos um dos problemas do meu tatuador: sua carência com relação a falar sua língua materna, materializada no alívio em me tatuar por duas horas tagarelando no vernáculo de Molière. Fui certeiro e disse: por que você não muda do Alto Canadá para Montreal? Lá você poderá falar...ao que ele imediatamente me interrompeu reclamando: Quebec não dá: tem franceses demais por lá! Pensei comigo mesmo: “nada mais francês, round 2!”, olhei para Jean Christophe e falei:


“What about a beer right after this tattoo thing eh?”



REFERÊNCIAS:

RUSSEL, Jason. Canada, a Working History. Dundurn Press, 2021.

TEILLER, Jean. The North-west Is Our Mother: The Story Of Louis Riel's People, The Métis Nation. Harper Collins, 2021.

SENA, André Luis Prudêncio. Flashes da História Canadense. Jornal de Toronto, 2020 ad nunc.

ANDERSON, Fred. Crucible Of War: The Seven Years' War And The Fate Of Empire In British North America, 1754-1766. Knopf Dubleday Publishing Group, 2001.

GOSSAGE, Peter & LITTLE, J. I. An Illustrated History of Quebec. Tradition and Modernity. Oxford University Press, 2012.


*André Sena é historiador (UERJ).



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