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  • Foto do escritorLuciene Carris

Baía de Guanabara: paisagem e memória

Atualizado: 20 de jan. de 2023

Rio de Janeiro, 19 de janeiro de 2023.

Luciene Carris*


No próximo dia 20 de janeiro de 2023 se comemora no município do Rio de Janeiro o dia de São Sebastião, o padroeiro da cidade, conhecido como protetor da humanidade contra a fome, a peste, o protetor das pessoas feridas e com doenças contagiosas. A relação do santo de origem francesa com a história do Rio de Janeiro remonta ao período da colonização portuguesa, em especial, a expulsão dos franceses da Baía da Guanabara que teria ocorrido nesta data, como bem apontou Carlos Eduardo Pinto de Pinto no texto São Sebastião, Oxossi e a história do Rio de Janeiro, publicado aqui no Box Digital de Humanidades.


Conhecida como “seio do mar” pelos indígenas, a Baía da Guanabara pode ser considerada como uma testemunha importante da história do Rio de Janeiro. Vale destacar que é a segunda maior baía do litoral brasileiro, depois da Baía de Todos Santos, e compreende uma área de cerca de 412 km2 de espelho d´água, abrangendo 15 municípios do estado, tais como: Duque de Caxias, São João de Meriti, Belford Roxo, Nilópolis, São Gonçalo, Magé, Guapimirim, Itaboraí, Tanguá, Rio de Janeiro, Niterói, Nova Iguaçu, Cachoeiras de Macacu, Rio Bonito e Petrópolis. Considerada, também, como uma das mais formosas bacias do mundo devido a sua beleza natural, que sem dúvida, atrai a atenção de muitos habitantes e turistas. Apesar da sua degradação ao longo dos séculos e da sua conversão a um cemitério de inúmeras embarcações, a Baía é um estuário que recebe muitos rios originados na Serra do Mar e na Baixada Fluminense, além disso, possui 42 ilhas.


Uma das imagens mais impressionantes sobre a Baía da Guanabara que me vem a memória é a pintura de Leandro Joaquim, que retratou as baleias jubarte há cerca de 200 anos. Fugindo das águas geladas do Ártico, os mamíferos marinhos buscavam temperaturas mais amenas para acasalar e procriar. O fenômeno se tornou cada vez mais raro, mas, em 2021, muitos se surpreenderam com a aparição de muitas baleias e com suas curiosas piruetas que atingem cerca de 16 metros. Cada vez mais raro, também, é a presença do boto-azul, uma espécie de golfinho, aliás, muitos ambientalistas destacam com pesar a existência de pouquíssimas espécies encontradas no estuário.




Pesca da baleia na Baía de Guanabara, Leandro Joquim, óleo sobre tela, 1750-1798.

No primeiro plano, a Bateria Ratier, atual Forte Tamandaré da Laje.

Museu Histórico Nacional



A natureza pujante da Baía de Guanabara foi descrita por cronistas, viajantes, pintores e poetas desde que do dia 01 de janeiro de 1502, quando o explorador português Gaspar Lemos adentrou na Baía de Guanabara, e avaliou aquele acidente como a foz de um grande rio. A partir dessa data, muito se descreveu sobre o novo mundo e a literatura de viagem floresceu com a invenção da tipografia por Gutenberg. Não por acaso, a Baía de Guanabara foi alvo da pena do missionário genebrino Jean de Lery (1536-1613), que acompanhou a empreitada do almirante francês Nicolas Durand de Villegagnon (1510-1561), a chamada França Antártica.


Lery, originalmente um sapateiro e aluno de teologia do líder religioso João Calvino, viajou para o Brasil, acompanhado de outros protestantes, e aqui presenciou a falência do projeto de Villegagnon, o fracasso da primeira tentativa de uma colônia francesa no ultramar, a segunda, também malograda, foi no Maranhão entre 1612 e 1615. Apesar disso, deixou um importante relato de sua viagem conhecida como Viagem à terra do Brasil, originalmente publicada em 1578. A obra foi lida pelos seus contemporâneos como um livro de viagem e de aventuras, contudo, ao longo do tempo, se converteu em um excepcional documento histórico e etnográfico, em especial, sobre os tupinambás, aliados dos francesas.


Sobre a natureza exuberante que tanto atraiu a curiosidade e a cobiça de tantos europeus, Lery revelou que as baleias eram “verdadeiros monstros marinhos” e a Baía era, no seu entender, um caudaloso rio, como se observa a seguir:


Não deixarei de mencionar também as horríveis baleias que diariamente nos mostravam suas enormes barbatanas fora d’água e folgando neste vasto e profundo rio, aproximavam-se tanto da nossa ilha que as podíamos atingir a tiros de arcabuz. Entretanto, como têm o couro muito duro e o toicinho espesso, não creio que as balas penetrassem a ponto de ofendê-las; prosseguiam no seu caminho e suponho que não viessem a morrer (LERY, 1961, p. 89).


Na sua obra, relatou diversos animais, entre outros aspectos curiosos, mas sobre os golfinhos citados anteriormente na Baía, revelou que:


E quando o mar se agita surgem esses golfinhos repentinamente à tona d’água, mesmo à noite e tornam o Oceano quase verde. É um prazer ouvi-los roncar e fungar como porcos; mas quando os marinheiros os veem assim nadar e atormentar-se pressagiam próxima tempestade o que de fato muitas vezes vi acontecer. Por mar calmo reuniam-se não raro em tão grande número em torno de nós e até onde alcançava a vista parecia o mar coalhado de golfinhos; e como não se deixavam apanhar tão facilmente quanto os outros, não os tínhamos quando queríamos (LERY, 1961, p. 54).


Por sua vez, o padre jesuíta português Fernão Cardim (1540-1625) descreveu a fauna, flora, rituais, hábitos dos povos ameríndios na obra Tratados da terra e gente do Brasil, escrito entre 1583 e 1601, corresponde a uma compilação de textos, mas que só foi descoberto tardiamente, e publicado em 1925. Cardim foi secretário do visitador Cristóvão de Gouveia da Companhia de Jesus, e viajou pelas capitanias da Bahia, de Pernambuco, Espírito Santo, do Rio de Janeiro e de São Vicente. O intuito da viagem era dirimir possíveis “dúvidas, surgidas no contato com outros povos, renovando os votos e a fé daqueles religiosos que estavam distantes das certezas europeias”. Vale lembrar que a Companhia de Jesus haveria de ser expulsa dos domínios do reinado de d. José I em 1759. De todo modo, o seu relato revela dados interessantes sobre a cidade, que já ocupava o Morro do Castelo e sobre a Baía de Guanabara revelada como uma obra divina:


A cidade está situada em um monte de boa vista para o mar, e dentro da barra tem uma baía que bem parece que a pintou o supremo pintor e arquiteto do mundo Deus Nosso Senhor, e assim é coisa formosíssima e a mais aprazível que há em todo o Brasil, nem lhe chega à vista do Mondego e Tejo; é tão capaz que terá vinte léguas em roda cheia pelo meio de muitas ilhas frescas de grandes arvoredos, e não impedem a vista umas às outras que é o que lhe dá graça (CARDIM, p. 152).


Outros tantos cronistas chegaram aqui nas terras recém-descobertas do outro lado do Oceano Atlântico, contribuindo para a construção de um imaginário pitoresco e exótico sobre a sua natureza e seus povos originários. Aliás, os indígenas, naturais dessas terras muito sofreram, consequentemente, com muitas doenças como a varíola, com a aculturação, e em especial, com a sua dizimação, uma vez que se estipula em cerca de três milhões habitantes por volta de 1500. Certamente, podemos considerá-los como os verdadeiros cariocas aqueles que habitavam essas terras em tempos remotos, e que hoje sofrem com o apagamento de sua história na cidade.




Forte Tamandaré da Laje

Fonte: Poder Naval.

Disponível em: l1nq.com/Wpu3v Acesso em: 19 jan. 2023.


A preocupação com a defesa foi constante durante o período colonial, não por acaso, o medo de novas invasões levou a construção de fortes e fortalezas, que atualmente constituem um importante patrimônio histórico aberto à visitação. Assim, bem na entrada da Baía da Guanabara encontramos a Fortaleza de Santa Cruz, o Forte Tamandaré da Laje e a Fortaleza de São João, que formavam uma importante linha de defesa contra corsários e invasores. O único indisponível para visitação é o Forte Tamandaré da Lage, onde funcionou a efêmera Bateria Ratier na ilha da Laje, uma espécie de bunker construído pelos franceses durante a França Antártica. E, assim, foi reutilizado pelos portugueses e teve outras funções antes de ser desativado, serviu de prisão para muitos como Bento Gonçalves e Pedro Boticário, envolvidos na Revolta da Farroupilha, bem como sofreu com os bombardeios durante a Revolta da Armada nos primeiros anos do governo republicano. Ali na Fortaleza de São João na Urca, podemos observar o marco original da cidade, pois foi ali numa área do sopé entre os morros Cara de Cão e o Pão de Açúcar, que surgiu a cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro.




Fortaleza de São João e o marco de nascimento da cidade

Centro de Capacitação Física do Exército e Fortaleza de São João

Disponível em: http://www.ccfex.eb.mil.br/sitio-historico Acesso em: 19 jan. 2023.



E, assim, citando Simon Schama: “a natureza não é algo anterior à cultura e independente da história de cada povo. Em cada árvore, cada rio, cada pedra, estão depositados séculos de memória”. Portanto, a Baía da Guanabara se insere na paisagem “preenchida ideologicamente por significados identitários e simbólicos (inclusive de nacionalidade), reproduzidos pela literatura e pela pintura, que acabam por alimentar os imaginários sociais, ao mesmo tempo que se alimentam desses.” (SCHAMA, 1996)




Referências:


Baía de Guanabara. CEDAE. Disponível em: https://cedae.com.br/baiadeguanabara Acesso em: 19 jan. 20223

CARDIM, Fernão. Tratados da terra e gente do Brasil. Disponível em: https://fundar.org.br/wp-content/uploads/2021/06/tratados-da-terra-e-da-gente-do-brasil.pdf Acesso em: 10 jan. 2023.

FERNANDES, Eunícia Barros. Fernão Cardim: a epistolografia jesuítica e a construção do outro. Tempo, n. 14, 2009. Disponível em: https://fundar.org.br/wp-content/uploads/2021/06/tratados-da-terra-e-da-gente-do-brasil.pdf Acesso em: 10 jan. 2023.

LERY, Jean de. Viagem à terra do Brasil. RJ: Biblioteca do Exército, 1961.

Jubartes voltam à Baía de Guanabara, onde já foram caçadas. O Especialista, 26/06/2021. Disponível em: https://oespecialista.com.br/jubartes-voltam-a-guanabara-onde-ja-foram-cacadas/ Acesso em: 12 jan. 2023.

Salvem os botos-cinza: só restam mais trinta animais na Baía de Guanabara. Veja Rio, 02 mai. 2022. Disponível em: https://vejario.abril.com.br/cidade/boto-cinza-baia-guanabara/ Acesso em: 12 jan. 2023.

Braga, Elcio, O terror e o amor no abandonado Forte da Laje. Youtube, 06 jun. 2018. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=1NmfrNlm7lg Acesso em: 12 jan. 2023.

SCHAMA, Simon. Paisagem e memória. São Paulo, Companhia das Letras, 1996.




Luciene Carris é historiadora (UERJ).


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