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  • Foto do escritorCarlos Eduardo Pinto de Pinto

Atiraram no pianista: música e ditadura na América Latina

Atualizado: 16 de nov. de 2023

Rio de Janeiro, 12 de novembro de 2023

Carlos Eduardo Pinto de Pinto *


Atiraram no pianista, atualmente em cartaz em algumas cidades, é um documentário de animação dirigido por Javier Mariscal e Fernando Trueba, que também assinam o excelente Chico & Rita (2010). O roteiro acompanha o jornalista estadunidense Jeff Harris em sua viagem ao Rio de Janeiro para uma série de entrevistas com personalidades ligadas à Bossa Nova. Ao longo do percurso, Jeff se interessa pelo trabalho de um pianista, Tenório Jr., e acaba descobrindo que sua história foi interrompida pela ditadura argentina, tendo sido preso, torturado e assassinado durante uma turnê com Vinícius de Moraes e Toquinho em 1976. A partir desse ponto, o jornalista e o filme mudam seu foco narrativo e passam a tentar compreender a trajetória de Tenório Jr.


Cartaz em espanhol de Atiraram no pianista. Disponível em: https://cinemacomcritica.com.br/2023/10/atiraram-no-pianista/. Acesso em: 12 nov. 2023.


Antes de apresentar detalhes sobre o assassinato do músico, vale demarcar que Atiraram no pianista é, antes de tudo, um filme sobre música e uma animação muito sofisticada. A narrativa dá acesso a “causos” e composições relativos à música brasileira dos anos 1950 e 1960, e ainda permite fruir ambientes – ruas, cafés, livrarias, casas, estúdios de gravação, boates – reinventados por meio de uma animação que mobiliza cores, luz e sombras com maestria.


Aliás, é notória a mudança de “clima” entre a parte inicial do filme, quando as histórias da Bossa Nova são o fio condutor, e o momento em que a morte de Tenório Jr. e as ditaduras latino-americanas vêm para primeiro plano. De um período em que tudo parecia ter a leveza de “um barquinho a deslizar no macio azul do mar” (Roberto Menescal e Ronaldo Bôscoli), se passa para um painel com muito mais ruídos e notas dissonantes. Se, por um lado, esse recurso ajuda a demarcar as consequências das ditaduras para a América Latina, também colabora para reforçar uma leitura superficial da história da música brasileira. Reféns de uma narrativa que apresenta com tons oníricos o período anterior ao Golpe civil-militar de 1964, fase inicial da Bossa Nova, os diretores acabam por demarcar um corte narrativo em que as mazelas se concentram no período posterior, durante a ditadura.


Minha intenção com esse comentário não é afirmar que as coisas não tenham piorado – pelo contrário, estou completamente de acordo que o Golpe interrompeu violentamente uma escalada de empoderamento de trabalhadores, estudantes, intelectuais e artistas. Gostaria apenas de chamar a atenção para o fato de que havia miséria e exclusão no Brasil dos anos 1950 e 1960. Inclusive, muitos músicos e cantores bossanovistas sabiam disso, a exemplo de Carlos Lyra e Nara Leão, que participaram de projetos de esquerda como o Centro Popular de Cultura e o espetáculo Opinião – este, imediatamente depois do Golpe – compondo e interpretando canções que denunciavam o caráter subdesenvolvido do país (Caldas, 2005; Ridenti, 2000). Portanto, se precisasse apontar um defeito no filme, escolheria esse pacto com uma leitura mítica que apresenta o período como um paraíso na Terra (ou, mais especificamente, na Zona Sul do Rio de Janeiro).


Voltando para a trajetória de Tenório Jr., o filme acompanha, por meio das entrevistas de Jeff Harris, o início da ascensão profissional do pianista – que só teve um LP gravado como líder, intitulado Embalo, além de participar como integrante do grupo Os cobras e de ter performado em diversas gravações de outros artistas –, até o seu “desaparecimento” na Argentina em 1976. Segundo Ruy Castro, em A onda que se ergueu no mar (2001), outra fonte para a história de Tenório,


Na madrugada de 18 de março de 1976, o pianista brasileiro Francisco Tenório Jr. saiu do hotel Normandie, na esquina da avenida Corrientes com a rua Rodriguez Peña, em Buenos Aires, para comer um sanduíche e comprar um remédio. Tenório Jr. estava na Argentina como acompanhante de Vinícius de Moraes e Toquinho, que faziam uma temporada no Teatro Gran Rex, também na Corrientes. Ao sair para a rua, deixara um bilhete na portaria dizendo o que fora fazer e avisando: “Volto logo”. (...) Tenório não voltou – nem naquela noite nem nunca. Na verdade, nunca mais foi visto por seus amigos e seu corpo nunca foi encontrado. Tinha 33 anos, quatro filhos e, no Rio, sua mulher esperava o quinto para dali a um mês. (Castro, 2001, p. 211).

O que se seguiu foi uma série de tentativas ineficazes por parte dos amigos, colegas e familiares de localizar o músico. Aos poucos, a possibilidade de que seu “desaparecimento” tivesse a ver com o golpe militar que derrubaria Isabel Perón dias depois, em 24 de março de 1976, foi se evidenciando. Segundo depoimentos disponibilizados pelo filme, as ruas de Buenos Aires já estavam tomadas por tanques e homens armados quando Tenório desapareceu. O que ocorreu de fato só veio a público em 1986, através da entrevista concedida à revista Senhor por um ex-soldado da inteligência da Marinha argentina, Claudio Vallejos. Tenório Jr. foi confundido com um intelectual “comunista” por conta de sua aparência – roupas escuras, cabelos e barba longos – e levado para a Escola de Mecânica da Armada onde, apesar de alegar inocência e explicar que não tinha nenhum envolvimento com política, foi torturado sob a liderança do tenente Alfredo Astiz. Após nove dias, foi executado com um tiro na testa por Astiz.


O documentário apresenta uma perspectiva bastante complexa das ditaduras latino-americanas, abordando a operação Condor, que pautou a cooperação entre governos ditatoriais do continente e fazendo referência ao apoio dos EUA aos golpes. Contudo, um aspecto que o documentário não chega a explorar, mas que pode ser conferido no livro de Ruy Castro (2001), é que o Serviço Nacional de Inteligência (SNI) brasileiro, através de agentes lotados em Buenos Aires e com a conivência de funcionários da Embaixada do Brasil, teria participado diretamente das sessões de tortura de Tenório Jr. Após confirmado que o músico não tinha nenhuma conexão com a resistência à ditadura no Brasil, e nem mesmo fazia parte de qualquer militância política, o assassinato surgiu como solução segura para ambas as ditaduras, já que ele tinha visto os rostos de seus torturadores argentinos e brasileiros.


Mesmo após a entrevista de Vallejos, nem o governo da Argentina, nem do Brasil fizeram algo para reparar o assassinato de Tenório Jr. A sua esposa nunca teve direito à pensão porque, sem o corpo, não poderia ser considerada viúva. As entrevistas com ela e alguns dos cinco filhos do casal evidenciam o sofrimento perpetrado a eles também. Do ponto de vista político, esse é um dos trunfos do documentário: remarcar o quanto uma ditadura atinge a sociedade como um todo, mesmo a quem não se opõe a ela – contrariando a máxima do discurso conservador, segundo a qual “só sofreu quem mexeu com os militares”. Tenório Jr., seus amigos e parentes não estavam envolvidos com política, mas foram radicalmente impactados pela violência de Estado. Atiraram no pianista: a reparação é necessária, mas a morte é irreversível.


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Referências


Filme

Atiraram no pianista. Documentário/animação. Dir. Javier Mariscal e Fernando Trueba. Filme. Espanha/França/Países Baixos/Portugal/Peru. 2023.


Música

Embalo. Tenório Jr. Disponível em:

O LP. Os Cobras. Disponível em:


Livros


CALDAS, Waldemar. A cultura político-musical brasileira. São Paulo: Musa Editora, 2005.

CASTRO, Ruy. A onda que se ergueu no mar. São Paulo, Companhia das Letras, 2001.

RIDENTI, Marcelo. Em busca do povo brasileiro: artistas da revolução, do CPC à era da TV. Rio de Janeiro: Record, 2000.


* Carlos Eduardo Pinto de Pinto é professor e historiador (UERJ).

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