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As tempestades que abalaram a Bahia e demais Estados brasileiros

UM OLHAR INDÍGENA DECOLONIAL & AS PRÓPRIAS PESSOAS DO POVO ENSINANDO OS CAMINHOS - Manó Paranã Obaitî Ybaka*


Ilhéus, 15 de abril de 2022.

Casé Angatu**


“Manó Paranã Obaitî Ybaka
(Casé Angatu)

manó paranã
obaitî ybaka

robaca amana
obaitî yby

yby tecó y
suí ygarapés

robaca paranã
obaitî ybaka

nheypyrunga bebé
ybyuamana moakyma

yjara erecoara
yecobé”
(Yecobé – Casé Angatu)

O poema numa interpretação quase impossível:

"onde o mar / encontra o céu / vira chuva / encontra a terra / terra está nas águas / dos rios / viram mar / encontram o céu / reiniciam a voar / ar molhar / mãe das águas cuida / da água VIDA” (Por: Casé Angatu)

Crédito: Arquivo pessoal.

No final de 2021 e início de 2022, Temporais Abalaram as Populações de diferentes lugares de Pindorama (Brasil). Este texto foi escrito sob o impacto do que aconteceu na região onde vivo e que foi uma das mais afetadas: Sul, Extremo Sul, Oeste, Sudoeste da Bahia e Norte de Minas.


Dedico à todas as pessoas de Pindorama que encantaram, foram feridas e perderam o pouco que tinham materialmente. Como se já não bastasse a pandemia, o governo fascista/genocida e a estrutural desigualdade social/econômica que agride as parcelas despossuídas de bens materiais.


Dedico, especialmente, as parcelas da população que estão fora das pautas de alguns movimentos sociais e identitários. Pessoas que Resistem, (Re)existem e ensinam os caminhos.



A Percepção Originária vinda da Sabedoria Ancestral


Era a primeira segunda-feira do mês de dezembro desses quase dois anos da doença pandêmica (6 de dezembro de 2021). Logo cedo, dois Parentes Indígenas e Pescadores – Bijupirá e Baiacu – se encontraram à beira-mar entre o Jairy – Sirihyba que fica aqui em Terras Tupinambá em Olivença (Ilhéus/BA). Estavam em frente à Aldeia Jairy Ituaçu e à Aldeia Taba Gwarïnï Atã (onde moro). Como quase sempre faço pela manhã, também estava lá.

Sabe ... nosso Território fica na Mata (Ka’á) Atlântica e em frente ao Paranãussu (Mar Grande – Oceano Atlântico). Nossa Terra (Opaba) é cortada por rios, riachos e ygarapés onde correm águas férreas, consideradas medicinais. Opaba Poranga (Nossa Terra Linda), de muitas águas, matas, bichos e encantarias.

Voltando ao encontro que presenciei pela manhã entre os dois Parentes Pescadores Tupinambá, Bijupirá e Baiacu, no dia anterior (domingo), combinaram logo cedo na segunda colocarem a jangada (ygapeba) no mar para pescarem. Sei disso porque estava conversando com os dois quando marcaram a pescaria.


Ao se encontrarem, conversaram:


“Katuara Parentes”, disse Bijupirá Tupinambá.

“Katuara”, responderam Baiacu Tupinambá e Casé Angatu.


Bijupirá e Baiacu olharam, então, para o mar, miraram o céu, sentiram o vento e continuaram a prosa:


“Rapaz ... hoje o mar (paranã) tá retado de agitado (yaíba) e a maré cheia (yúra pungá)”, falou Bijupirá Tupinambá.

“Oxeee ... tu não viu ontem não ... foi a noite (pytuna) todinha de relâmpago (amamberaba) ... o céu (ybaca) ficou claro ... parecia São João”, comentou Baiacu Tupinambá.

“Foi mesmo ... do jeito que tá aí não tem como botar a jangada (ygapeba) no mar (paranã)” – afirmou Bijupirá Tupinambá.

– “Justo agora que é época de pegar o pirá (peixe) e conseguir uns trocados” – ponderou Baiacu Tupinambá

“Tupã sabe o que faz e Janaina também ... bora molhar a palavra que a chuva (amana) já tá caindo forte (atã) e pelo jeito vai demorar passar” – considerou prevendo Bijupirá Tupinambá – “Isto se não virá tempestade (ybytuaíba) ... bora ...” – pressentiu Baiacu Tupinambá concordando com a sugestão de molhar a palavra.[1]



Foto: Jangada (Ygapeba) Indígena.
O Povo Tupinambá mantém a pesca artesanal ancestral.
Data: sem datação. Autoria: Mauricio Pinheiro.

E aquela chuva virou mesmo tempestade como intuíram Bijupirá e Baiacu, demorando cerca de seis dias para estiar (de 06 até 12 de dezembro de 2021). Os meus Parentes tinham razão em suas previsões feitas através da percepção originária, gerada das vivências atemporais como pescadores indígenas e da sabedoria ancestral.

Porém, não sabíamos que temporal seria fora do comum em sua intensidade, demorando um tempo maior para abrandar. Até então, não tínhamos noção que aquela tempestade era gerada por um ciclone subtropical denominado pela Marinha do Brasil com o nome em tupy de “Ubá”.[2]

Do mesmo modo, como poderíamos prever que o lugar onde morávamos (Terra Indígena Tupinambá de Olivença – Ilhéus) seria uma das áreas afetadas pelas tempestades, bem como toda região Sul, Extremo Sul, Oeste, Sudoeste da Bahia e Norte de Minas Gerais. Para piorar, sem ainda nos recuperarmos após a passagem do ciclone subtropical Ubá, fomos afetados, novamente, por tempestades cerca de 11 dias depois entre os dias 23 até 25 de dezembro de 2021.

Os novos temporais, segundo os especialistas em meteorologia, foram causados pelo fenômeno climático chamado “La Niña” e pelo aumento da temperatura no oceano. Isto ocorreu quando ainda terminava este texto e, por isto, precisei fazer sua atualização no sentido de inserir a segunda onda de temporais que enfrentamos.

Por isto, indago: será que as agências/institutos meteorológicos e climatológicos não conseguiriam prever eventos climáticos e meteorológicos extremos como os que nos abalou? Não seria possível emitir alertas e tomar medidas de precaução, reduzindo as consequências?[3]

Na mesma direção, questiono: são só os temporais os únicos responsáveis por afetarem as vidas das pessoas que, geralmente, são as mais carentes materialmente pelo país afora, resultando em mortes, ferimentos, doenças e perdas do pouco que se tem? Ou será que o capitalismo e seus mandatários também possuem responsabilidades?


* Onde o Mar Encontra Céu (Casé Angatu)

[1] Os nomes dos Parentes que aparecem neste diálogo foram recriados para presente narrativa no sentido de resguardar os mesmos. A conversa foi aqui reproduzida com algumas alterações, até porque estava guardada na memória que, às vezes, é etérea. [2] O nome “Ubá” dado pela Marinha do Brasil ao ciclone subtropical que nos afetou é de origem tupy e significa Canoa. A Marinha utiliza uma série de nomes indígenas para denominar “eventos climáticos ou meteorológicos extremos” como o que ocorreu: Arani (tempo furioso); Bapo; Cari (homem branco); Deni (tribo indígena); Eçaí (olho pequeno); Guará (lobo do cerrado); Iba (ruim); Jaguar (lobo); Kurumí (menino); Mani (deusa indígena); Oquira (broto de folhagem); Potira (flor); Raoni (grande guerreiro); Ubá (canoa indígena); Yakecan (o som do céu) (In: CLIMATEMPO, Clima e Previsão do Tempo. Novo ciclone subtropical poderá se formar na costa brasileira. Disponível em: https://www.climatempo.com.br/noticia/2021/04/17/novo-ciclone-subtropical-podera-se-formar-na-costa-brasileira-9190 . [3] “Evento climático e meteorológico extremo” é forma como os especialistas em climatologia e meteorologia chamam acontecimentos como o ciclone subtropical “Ubá” que nos atingiu.

**Casé Angatu é Indígena e morador no Território Tupinambá em Olivença (Ilhéus/BA) na Taba Gwarïnï Atã – uma das áreas afetadas pelas tempestades causadas pelo ciclone subtropical Ubá e “El Niña”. Leciona no Programa de Pós-Graduação em Ensino e Relações Étnico-Raciais da Universidade Federal do Sul da Bahia (PPGER-UFSB) e na Universidade Estadual de Santa Cruz – (UESC/Ilhéus/BA). Pós-Doutorando em Psicologia na UNESP/Assis/SP; Doutor pela FAU/USP; Mestre em História pela PUC/SP; Historiador pela UNESP. Autor de livros e textos: alguns deles citados neste texto.
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