Rio de Janeiro, 01 de dezembro de 2022.
Leila Gibin*
As moedas são algo tão comum e corriqueiro no nosso dia a dia que muitas das vezes não reparamos nelas, especialmente agora com as ferramentas de compra nos meios virtuais (débito, crédito, pix etc.) reduzindo ainda mais seu uso. Somando-se a inflação que vem corroendo o poder aquisitivo da população nos últimos anos, as moedas acabam sendo desprezadas.
Apesar do quadro atual, deve-se salientar não só a relevância das moedas enquanto meio de realização de trocas por produtos e serviços, mas também como um objeto responsável por transmitir e reforçar os diversos símbolos considerados importantes para um povo ou uma nação. No Brasil, seja colônia, império ou república, já foram exaltados diferentes símbolos: imperadores, presidentes, escritores, brasões, a fauna e a flora. Deste modo, as moedas foram usadas para destacar os “heróis” de cada período, além de aspectos naturais considerados típicos do país.
Deve-se salientar que no Brasil colonial, após a introdução do meio circulante, as moedas passaram a ser o principal meio de trocas comerciais. As cédulas (dinheiro fiduciário) apenas seriam utilizadas no Brasil imperial, e, mais amplamente, no Brasil republicano (especialmente a partir do século XX). Havia moedas de diferentes materiais, sendo de menor valor produzidas em cobre, as intermediárias em prata e as de valores mais altos produzidas em ouro 22 quilates.
Ciente da importância da introdução do meio circulante na colônia, a Coroa portuguesa criou no Brasil sua primeira Casa da Moeda com sede na Bahia, em 1694, um ano após a descoberta de ouro em Minas Gerais. No ano seguinte, em 1695, foram cunhadas as primeiras moedas portuguesas para o Brasil, em ouro (1000, 2000 e 4000 réis) e prata (20, 40, 80, 160, 320 e 640 réis) [1].
Alguns tipos de moedas coloniais de ouro cunhadas no Brasil tinham em seu anverso o busto do governante e no reverso o seu brasão. Assim foi com dom João V, dom José I, dona Maria I e dom João VI.
Focalizando-se o reinado de dona Maria I, cruelmente conhecida como “a louca”, de 1777 a 1815, mas que na prática deixou de reinar em 1792 devido a problemas mentais, observamos que, fora questões relativas à sua sanidade, ser mulher na sucessão do trono implicava em delicadas questões. A tradição legada das Cortes de Lamego exigia que seu casamento fosse com um português, assim, a Princesa do Brasil, Maria Francisca, foi destinada a casar-se com seu tio d. Pedro III, irmão de d. José I.
Seu reinado foi marcado por importantes questões, entre elas a “viradeira”, pondo fim ao consulado pombalino. Já no período da regência de seu filho, ocorreu a transferência da Corte portuguesa para o Brasil, para onde d. Maria I foi trazida a contragosto, falecendo sem retornar a Portugal.
Figura 1: moeda de ouro de 6400 réis de 1783, d. Maria I e d. Pedro III.
Fonte: Sociedade Numismática Brasileira. Coleção Sabará – parte 1. XXIII Congresso Brasileiro de Numismática. Catálogo de leilão. São Paulo: Sociedade Numismática Brasileira, 2019, p. 18.
Voltando à condição feminina de d. Maria I, pode-se observar um caso ímpar nas representações de monarcas no meio circulante. Embora d. Maria I fosse a rainha legítima da linha de sucessão, não foi inicialmente representada sem a presença de seu consorte d. Pedro III (figura 1).[2] Além da imagem do casal, a moeda também contava com a seguinte inscrição: “Maria I e Pedro III por graça de Deus reis de Portugal e Algarves” (escrita literal em latim conforme aparece na moeda: MARIA I ET PETRUS III D. G. PORT. ET ALG. REGES).
A partir da representação presente nas moedas, nota-se os entraves que uma sociedade de base patriarcal impunha para uma mulher exercer o poder, pois se lhe era garantido pela ordem de sucessão, simbolicamente era legitimado pela presença masculina do seu marido, dando a ideia de uma monarca que não governava sozinha. Tal ideia era reforçada pela legenda presente nas moedas que colocava ambos como iguais, reis de Portugal, embora o nome da rainha aparecesse primeiro e sua face estivesse à frente.[3]
Figura 2: moeda de ouro de 6400 réis de 1786, véu de viúva.
Fonte: Sociedade Numismática Brasileira. Coleção Sabará – parte 1. XXIII Congresso Brasileiro de Numismática. Catálogo de leilão. São Paulo: Sociedade Numismática Brasileira, 2019, p. 22.
Com a morte de d. Pedro III em 1786, d. Maria I aparece sozinha nas cunhagens, isso já nas moedas confeccionadas naquele ano (figura 2). Tal fato a deixaria nas mesmas condições dos demais monarcas portugueses homens, se não fosse um nada discreto acessório: o véu de viúva. Desse modo, mesmo com a morte do marido, e a confecção de novas moedas onde d. Maria I aparece sozinha, o matrimônio e a presença do marido estão representados pelo véu de viúva. Portanto, revelando as complexas e delicadas relações sociais, onde o poder de uma mulher, mesmo na sua condição de rainha, era sancionado pelo poder masculino através do casamento. Só mais tarde, em 1790, quando se acirravam as disputas internas quanto ao exercício de uma regência devido às condições mentais da rainha é que dona Maria I tem o seu véu de viúva substituído pelo “véu toucado” (figura 3), expressando que ela poderia continuar reinando mesmo sem o marido, o que não aconteceu, pois, dois anos mais tarde venceu a facção que a tiraria do poder em prol da regência de d. João.
Figura 3: moeda de ouro de 6400 réis de 1789, véu toucado.
Fonte: Sociedade Numismática Brasileira. Coleção Sabará – parte 1. XXIII Congresso Brasileiro de Numismática. Catálogo de leilão. São Paulo: Sociedade Numismática Brasileira, 2019, p. 23.
Assim, pode-se concluir que as moedas e o meio circulante em geral são um formidável instrumento para representar ideais e valores. Nesse caso, a imagem de d. Maria I junto ao marido e mais tarde fazendo uso do véu de viúva, presente nas moedas de ouro, ou seja, de maior valor, além de ligar a monarca à riqueza também a deixava dentro dos padrões estabelecidos por aquela sociedade. O fato de os monarcas anteriores e posteriores serem representados sós, logo, reinando “sozinhos”, sugere um tratamento diferenciado para homens e mulheres mesmo na realeza, visto que a mulher precisou ter um homem ao seu lado para ter seu poder legitimado.
Referências:
CASA DA MOEDA DO BRASIL. História da CMB. Disponível em: https://www.casadamoeda.gov.br/portal/socioambiental/cultural/historia-da-cmb.html. Acesso em 10 nov. 2022.
CATÁLOGO Vieira: moedas brasileiras. Rio de Janeiro: Roberto Alves produções gráficas, 2021.
CATÁLOGO Vieira: cédulas brasileiras. Rio de Janeiro: Roberto Alves produções gráficas, 2022.
PEDREIRA, Jorge; COSTA, Fernando Dores. D. João VI: um príncipe entre dois continentes. São Paulo: companhia das letras, 2008.
PROBER, Kurt. Catálogo das moedas brasileiras. Rio de Janeiro: Kosmos, 1981.
PROBER, Kurt. Obsidionais: as primeiras moedas do Brasil. Rio de Janeiro: editor Kurt Prober, 1987.
BEIRÃO, Caetano. D. Maria I: 1777-1792. Lisboa: Empresa Nacional de Publicidade, 1944.
Figuras
Sociedade Numismática Brasileira. Coleção Sabará – parte 1. XXIII Congresso Brasileiro de Numismática. Catálogo de leilão. São Paulo: Sociedade Numismática Brasileira, 2019.
* Leila Gibin é Doutoranda em História política e sociedade pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Mestra em História política e cultura também pelo PPGH-UERJ (2021). Licenciada (2019) e Bacharel (2018) em História na UERJ. Tem como principais temas de interesse: História e Imagem, História e Cinema, História do Rio de Janeiro, Período Joanino, Brasil Imperial, Segundo Reinado, artistas viajantes, artistas franceses no Brasil, representações dos negros no século XIX, escravidão urbana no Rio de Janeiro e numismática brasileira.
Notas: [1] Essas foram as primeiras moedas que os portugueses cunharam no Brasil, mas não foram as primeiras moedas feitas no Brasil, esse título se deve às moedas conhecidas como obsidionais cunhadas pelos holandeses nos anos de 1645-1646 (trabalhadas em ouro com valor facial de III, VI e XII florins). [2] Valores faciais das moedas em que o casal foi representado: 6400, 3200 e 1600 réis (todas em ouro). [3] O nome de ambos também está presente nas legendas das moedas de prata e cobre.
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