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Foto do escritorLuzimar Soares

As memórias como forma de vida

Guarulhos, 15 de julho de 2022.

Luzimar Soares*


Durante muito tempo, acreditei que as nossas memórias serviam apenas para contarmos aos nossos descendentes, alimentarmos os que vêm depois de nós para que saibam suas origens, assim como recebemos essas informações dos nossos ascendentes. Com o passar do tempo, pelo acesso que tive à educação formal, bem como à pesquisa acadêmica, mais especificamente a pesquisa histórica (aquela que pensa a chamada história vista de baixo, ou pensa o escovar a história a contrapelo), fui compreendendo a memória de outra maneira.


Quando o mundo entrou em quarentena em razão da pandemia da Covid – 19, deparei-me com algumas situações que me fez pensar em como a memória de pessoas idosas podem ser importantes para que consigamos compreender algumas coisas que acontecem hoje e que, em razão de não conhecermos as nossas raízes, não nos sentimos parte dessas memórias. E como é necessário conhecermos o passado para que compreendamos o presente.


No início da reclusão, entendi algumas limitações da velhice. Conviver com idosos pode ser um lugar de muito aprendizado, sentir e perceber as precariedades da vida. Ao vivenciar a cotidianidade de dois idosos, fiz algumas reflexões, constatei que a memória é o que possibilita o mínimo de conforto na velhice e traz a consciência da importância de mantermos essas memórias vivas. Abaixo segue um pouco do que pude constatar com essa proximidade.


O paladar, bom esse vira uma espécie de memória, se conseguimos guardar em nossos cérebros o gosto de cada alimento os comemos acreditando que ainda sentimos o gosto. A natureza é gentil, ela nos permite a memória, no entanto, o prato que não conhecíamos, experimentamos e ou não por capricho, já não nos é possível distinguir com clareza o sabor, o olfato, este que era o primeiro a nos guiar pelas delícias dos sabores e nos permitia ficarmos longe dos cheiros desagradáveis, nos abandona.


Para além de entendermos o presente, as memórias nos colocam enquanto sujeitos históricos, algo que não nos é dito, ou talvez não nos vejamos assim, especialmente se somos parte das classes menos favorecidas, se somos sujeitos periféricos, se estamos inseridos nas minorias representadas, ficamos à margem da história contada pelas chamadas “elites”, ou, para citar Walter Benjamin, pelos “vencedores”. E, por falar em Benjamin, ele diz: “Ora os que num momento dado dominam são os herdeiros de todos os que venceram antes”.


Aos dominantes em dado momento da história, como forma de silenciar os “dominados”, é negado o direito a fala. Muitos historiadores e demais estudiosos já se debruçaram sobre o tema. Alguns falam em dar voz aos subalternos, outros dizem que todos têm voz. Mas a grande questão é se essas vozes serão ouvidas, onde serão ouvidas e, também, como serão ouvidas. O que me compele a pensar sobre as memórias do passado.


Sendo assim, buscar respostas na história oral pode ser uma forma de contribuir para trazer à baila personagens que tentaram silenciar, no entanto, essa história oral não pode ser compreendida apenas como gravações de entrevistas. O estudioso neozelandês – maori, Nepia Mahuika, fala da importância de descolonizar a história oral de forma a entender que o povo Maori carrega suas histórias para muito além daquilo que pode ser captado por gravadores.


Estes incluem whakairo (esculturas), kakahu (roupas) e rāranga (tecelagem), o qual destaque na performance oral como haka (dança), waiata (canções), wānanga (discussões orais coletivas) e whaikōrero (discursos formais). A história oral em Aotearoa (Nova Zelândia), muito mais do que os métodos de entrevista, é uma prática criativa e amplamente pública, realizada de múltiplas maneiras e espaços diariamente. A história oral pública que toma conhecimento deste amplo arquivo vivo deve necessariamente ampliar sua própria visão do que é uma oralidade ricamente texturizada em este país.


As memórias têm um valor social, ajudam-nos a contar, bem como a desvendar a história de um povo de uma época. Ecléa Bosi, em seus estudos, traz reflexões importantes sobre a importância da memória. Especialmente, fala sobre as Lembranças de Velhos, suas funções no agora, e a preciosidade dessas memórias. As sociedades atuais, na realidade, já há um tempo considerável, tem relegado aos idosos o lugar do esquecimento, do não valorativo, daquele que não mais produz.


Ingenuamente, ou talvez cruelmente, o etarismo tem colocado as pessoas cada vez mais como “pesos” para a sociedade. Ao idoso, é negada uma série de coisas, inclusive, o direito a memória, pois poucos são os que conseguem ouvi-los. As palavras demoram a se conectarem e serem proferidas, a necessidade de lucro pautada pela produção, não dá espaço para os velhos. Para Ecléa Bosi, as sociedades industriais são maléficas para os idosos.


Além de ser um destino do indivíduo, a velhice, é uma categoria social. Tem um estatuto contingente, pois cada sociedade vive de forma diferente o declínio biológico do homem. A sociedade industrial é maléfica para a velhice. Nas sociedades mais estáveis um octogenário pode começar a construção de uma casa, a plantação de uma horta, pode preparar os canteiros e semear um jardim. Seu filho continuará sua obra.


crédito: Wix.


Certamente, em algum momento de nossas vidas, talvez embebidos na crença de um progresso ascendente, seja intelectual, financeiro, social ou qualquer outro, somos compelidos a acreditarmos que não envelheceremos, melhor dizendo, que seremos diferentes, que produziremos mais, etc. etc. Quando, na realidade, sequer sabemos se envelheceremos. Mas, e se envelhecermos, seremos ouvidos? Biologicamente, não é possível “enganarmos” a velhice. Vivemos para chegarmos nesse lugar, construímos nossos legados e acreditamos numa velhice honrada, todavia, nunca saberemos como será nosso futuro.


Manter nossas memórias através da história oral pública pode ser uma forma de valorizar nossas histórias enquanto sociedade, descolonizar o pensamento e resgatar as culturas dos nossos ancestrais. Nossas memórias são nossas histórias, nossas culturas, nossas tradições, nosso caminhar.


Referências:

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994. (Obras escolhidas; v. 1)

BERNARDO, Luzimar Soares. Memórias da quarentena. Disponível em: https://memoriascovid19.unicamp.br/unity-memorie?cod_post=57. Acesso em: 07 de jul. 2022.

BOSI, Eclea. Memória e Sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: T.A.Queiroz, 1983.

MAHUIKA, Nepia. An outside guide to public oral. New Zealand Journal of Public History.Volume 5, No. 1, Dec. 2017. Disponível em https://www.waikato.ac.nz/__data/assets/pdf_file/0011/384896/02-Nepia-Mahuika-final-2017.pdf. Acesso em: 30 de jun. 2022


*Luzimar Soares é historiadora (PUC-SP/USP).

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