top of page
  • Foto do escritorBox Digital

Aranha-Minor, Diabo-Coxo e Pangloss: o que nos lega Alcindo Guanabara.

Toronto, 16 de dezembro de 2021.

André Sena*


Certa vez, ao ler a obra O Selvagem da Ópera, de Rubem Fonseca me deparei com um trecho que me chamou tanta atenção, que dele jamais me livrei: “o homem inteligente muda, e mudando se contradiz: a coerência é um atributo dos imbecis.” Palavras tão ácidas quanto indigestas, ainda hoje me sinto assombrado por elas, e não vejo melhor ilustração para discutir, nos breves parágrafos adiante, alguns elementos da incontornável biografia do grande intelectual brasileiro Alcindo Guanabara (1865-1918).


Crédito da imagem: Michel Thomas.


O talento precoce deste que foi chamado por alguns de Príncipe do Jornalismo Brasileiro já seria um dado suficiente para torná-lo digno de comentários. Fundou muito cedo, em 1886, um jornal chamado A Fanfarra, que pelo próprio título já se deduz seu caráter vocativo, polemista e anunciador. Alcindo Guanabara terminou seus dias amargurado, ressentido, e o que é pior, convencido da sua própria mediocridade, na medida em que se viu levado durante a vida, a servir um país governado por gente tacanha e mesquinha. Talvez estivesse certo neste último ponto. Definitivamente estava errado ao olhar sua própria imagem no espelho.


Seus inimigos e detratores fizeram o que puderam para cancelá-lo. Apelidaram-no de “pena de aluguel”, alegando que Guanabara colocava seu talento literário, jornalístico e intelectual a serviço de quem pagasse melhor. Esqueceram-se de sua coragem em abandonar antes dos 20 anos o curso de Medicina, e empregar-se como porteiro no Jockey Club do Rio de Janeiro para sobreviver, dedicando sua vida inteira ao jornalismo das ideias e sobretudo do debate político. Foi por algum tempo enfant gaté de José do Patrocínio, de quem nunca escondeu sua percepção crítica acerca do processo de abolição da escravidão durante o Império. Eram tempos de profunda tolerância e compreensão acerca do talento alheio, algo que dificilmente veremos nos dias de hoje, onde nos fechamos dentro de bolhas, buscando debater apenas com quem conosco poderá concordar.


Patrocínio, ao contrário, dono de uma generosidade digna dos grandes espíritos do tempo, conferiu a Guanabara a redação e editoração da coluna política do jornal A Gazeta da Tarde, que dirigia juntamente com outro gênio brasileiro, Raul Pompéia. A crítica que Alcindo Guanabara fazia a Abolição não era moral, era técnica e, portanto, nunca fez dele um escravocrata, embora muitos, como o acadêmico e imortal da Academia Brasileira de Letras Cícero Sandroni ainda insistam em apresentá-lo desta forma. Homem de natureza inquieta e de personalidade difícil, Guanabara aceitou o convite de conservadores para dirigir o jornal anti-abolicionista, A Novidade, cujo título provocou e ainda provoca risos naqueles que se dedicam a história do pensamento conservador no Brasil. Tinha seus 22 anos.


Republicano convicto, militou nas fileiras dos círculos políticos que derrubaram o Imperador em 1889 e é um dos signatários da Constituição de 1891, a primeira Carta Magna do novo regime, criado pela quartelada de 15 de Novembro. Foi oposição a Deodoro da Fonseca, fundador de uma república instável, quando o Marechal tentou em 1891 um golpe de Estado, algo que se tornaria uma dramática tradição política nacional.


Aliou-se ao ainda jovem parlamentar Nilo Peçanha na feroz oposição política ao Presidente Prudente de Morais, acusando-o de uma desastrosa condução no problema de Canudos e na guerra aos sertanejos fanáticos de Antônio Conselheiro. Foi acusado de ser um dos mandantes do atentado que quase ceifou a vida do Presidente da República em 5 de novembro de 1897, protagonizado a facadas pelo jovem militar, Marcellino Bispo de Miranda. Preso, Alcindo Guanabara será banido para Fernando de Noronha. No Porto do Rio de Janeiro, partindo para o banimento, aquele que no passado opunha-se a Abolição e aliava-se ao pensamento conservador, leva agora em suas mãos a obra do pensador anarco-comunista Piotr Kropotkin A Conquista do Pão. Rui Barbosa o defendeu nos tribunais e Guanabara foi absolvido das acusações que o levaram as grades e ao exílio.


Um de seus pseudônimos mais utilizados foi Diabo-Coxo e com ele escreveu crônicas de humor e ao mesmo tempo editoriais de intensa crítica e debate político. Uma das anedotas que cercam Guanabara foi um convite que lhe fizeram para fazer um editorial sobre Jesus Cristo para o caderno da Semana Santa de um dos jornais para o qual trabalhava. A resposta do jornalista teria sido: “devo escrever a favor ou contra?”. A história hoje desmente essa anedota, mas seu sucesso nos diz muito da fama e reputação de um personagem do pensamento brasileiro que alimentou o debate público por décadas a fio e escreveu obras importantes no campo da história política nacional.


Uma delas, e talvez o mais famoso de seus livros dedicados aos estudos históricos e políticos, tem como título A Presidência Campos Sales, onde Guanabara discute em seis volumes a história da própria formação republicana brasileira. Um verdadeiro manancial historiográfico, esta obra de fôlego de Alcindo Guanabara discute desde elementos político-partidários que levaram a queda do Império, a dinâmicas da política exterior e diplomática brasileira nos primeiros anos republicanos, como nossas relações com a Guiana e a República da Venezuela. Discute ainda, de forma magistral, a biografia política de personagens dessa transição, que precisam com urgência ser revisitados por nós. Seu elogio a Joaquim Nabuco, já no primeiro volume, é um dos trechos do livro que se tornaram mais conhecidos:


Joaquim Nabuco nunca foi homem de partido no sentido restrito que, em geral, nós damos a essa expressão. Pensador, antes que partidário; apóstolo, antes que combatente, não o preocupam os movimentos secundários, as manobras e as paixões dos que seguem a linha de seus ideais, com as quais não transige para assegurar vitórias materiais, que dir-se-ia não o interessarem. De todos os que se conservaram fiéis à monarquia, foi talvez o único que nunca nos deu a sensação do ódio e do despeito por amor das posições perdidas. Ficou alto e sereno, acreditando e dizendo com singeleza o desacordo em que estava com a geração de que era parte neste modo de considerar o interesse da Pátria. Para ele, o que havia a fazer não era a República: era a Monarquia Liberal. E dizia porquê com desassombro e sem arrebatamentos.


Alcindo Guanabara morreu senador da república que ajudou a construir e a fundar. O grande historiador brasileiro Nelson Werneck Sodré o considerava uma das figuras dominantes do pensamento brasileiro de seu tempo, junto com Paulo Barreto, o João do Rio: “o primeiro, mais jornalista do que escritor, o segundo, mais escritor do que jornalista.” O amargor dos últimos anos de vida de Guanabara consiste certamente em um daqueles traços emocionais dos gênios, que sempre insatisfeitos com o que testemunham ao seu redor, acabam atribuindo a si próprios o malogro de toda uma geração. Que a insatisfação e o não-conformismo de Guanabara sejam para nós um sinal de virtude e de rebeldia necessária, em um país onde o espírito do rebanho e do gado parecem insistir e tragicamente prevalecer.


*André Sena é historiador (UERJ).


REFERÊNCIAS

GUANABARA, Alcindo. A Presidência Campos Sales. Coleção Biblioteca Básica Brasileira. Senado Federal, Brasília, 2002, p.129.

SANDRONI, Cícero. Alcindo Guanabara e o jornalismo de seu tempo. Ciclo de Conferências “Origens da Academia”, ABL, 2004, p.69.

FONSECA, Rubem. O Selvagem da Ópera. Ed. Nova Fronteira, 2011.


170 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo
bottom of page