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A memória através dos alimentos

Guarulhos, 01 de setembro de 2021.

Luzimar Soares*


Alimentar-se é muito mais do que apenas sustentar o corpo, é nutrir-se para a vida. Uma boa alimentação é o mínimo que todos os seres vivos precisam, para nós humanos, a comida é um dos diferenciais mais importantes. A forma como consumimos os alimentos é cultural, é histórica e, também, ou talvez, principalmente, comercial. Ou seja, consumimos nossos alimentos de forma direcionada pelos grandes produtores. Os hábitos alimentares têm sido influenciados pela indústria ao longo dos anos, alterando a forma de se alimentar de muitas comunidades.


As formas como nos alimentamos, seja utilizando utensílios refinados, simples ou, até mesmo, fazendo uso das mãos para levar a comida à boca, é cultural também. Construímos nossas memórias de muitas maneiras distintas. A memória alimentar é afetiva, é amorosa, porém, pode ser, também, de afastamento. O que isso significa? Infelizmente, a humanidade não é alimentada em sua totalidade. Muitos passam fome, e isso é destruidor e incapacita inúmeras pessoas para uma série de atividades, além de levar tantos outros à morte. Especialmente no momento que vivemos hoje, a fome tem chegado a um número elevado de lares ao redor do mundo.


No entanto, hoje, quero falar de um alimento muito específico, justamente por sua importância histórica para o país e pela memória afetiva que desperta em mim. Trata-se da rapadura. Esse doce, que virou ditado popular: “rapadura é doce, mas não é mole não”, faz parte da nossa história enquanto sociedade brasileira. Foi utilizada pelos portugueses, juntamente com outros subterfúgios, como forma de atrair os indígenas para os aldeamentos. Foi, e ainda é, parte integrante da dieta alimentar de boa parte da população do Nordeste do Brasil e de nordestinos como eu que, mesmo vivendo na região Sudeste do país, mantenho o habito de consumir o que, para mim, é uma iguaria.


O Brasil é o sétimo produtor de rapadura do mundo, sendo a Índia o que mais produz. Originária da Nova Guiné, foi parte da construção da nossa história enquanto país. Os engenhos de cana-de-açúcar permearam o Nordeste e, através do fabrico de açúcar, foi o responsável pela economia do país. O que pouco se fala é que a rapadura é, também, um produto muito importante, especialmente, para a alimentação no Nordeste.


No início dos anos de 1500, parte das ferramentas recomendadas para quem deveria se mudar para o país eram aqueles que auxiliavam na montagem de um engenho de cana-de-açúcar. De acordo com o historiador Luiz Amaral, um decreto de D. João determinava que trouxessem essas ferramentas.


É do mesmo ano de 1516 um alvará de D. Manuel o Venturoso, mandando distribuir "machados e enxadas e tôdas as ferramentas às pessoas que fôssem a povoar o Brasil e que procurassem e elegessem um homem prático e capaz de ir ao Brasil dar comêço a um engenho de açúcar; que se lhe desse uma ajuda e também todo o cobre e ferro necessários e mais coisas, para o fabrico do dito engenho". A citação é de Varnhagen. (AMARAL, 1960. p. 327/28).


O que nos mostra uma construção muito próxima ao inicio da ocupação portuguesa no Brasil, o produto rapadura tem alguns outros subprodutos, dos quais, apenas um, é bastante conhecido. Esses artigos fazem parte da vida do nordestino. A moagem, hoje, tem menor proporção, mas já foi uma realidade acontecer todos os anos. As mercadorias, além da rapadura, são: mel ou melaço, caldo de cana (garapa para nós nordestinos), alfinin e batida.



Crédito: Imagem de um engenho de açúcar,

Historia Naturalis Brasiliae de Guilherme Piso, 1648.



As memórias da infância, de tardes vividas nos engenhos que, naquele período, funcionavam à tração animal, foram reavivadas enquanto precisei escrever sobre alimentação e memória afetiva. Fazer uma pesquisa para falar sobre afetividades é sempre desafiador, porque nos leva a espaços em nossas mentes que há muito não frequentávamos. É, também, um trabalho de descoberta muito importante. Descobri que a rapadura é um alimento com muitos nutrientes, todavia, na região Sudeste, não é encontrada nos grandes supermercados. De maneira geral, é necessário encontrar casas especializadas em produtos nordestinos para adquirirmos tanto a rapadura quanto as demais mercadorias.


Considerar as memórias alimentares para construir trajetórias da humanidade é muito importante, e pode ser um caminho interessante de compreender a necessidade de sanarmos a fome no mundo. Acabar com a insegurança alimentar deve ser uma busca incessante até que nenhuma pessoa no mundo construa memória de fome.


A alimentação é muito mais do que a sustentação dos corpos e a manutenção da saúde. É, também, pertencimento, é memória, é história e laços afetivos. As sociedades humanas se desenvolveram e criaram tecnologias, as ciências trouxeram avanços em todas as áreas, mas, ainda assim, temos fome no mundo. Muitas pessoas não criam só memórias alimentares, mas, tristemente, criam memórias da falta de alimentação.


Resgatar memórias afetivas por meio da história e da confraternização através das comensalidades é uma forma importante de pertencimento. Todavia, talvez seja o momento de se construir uma realidade capaz de proporcionar a todas as pessoas no mundo construírem suas memórias afetivas através do alimento e, assim, termos uma sociedade mais saudável. Existem muitos desafios para que a fome seja erradicada, e permitir uma memória mais positiva mundialmente. Ao fim e ao cabo, a alimentação é um dos principais elos que unem as pessoas.


E, pensando nos dias resgatados, como uma nordestina apaixonada por rapadura, resolvi arriscar a construção de um verso:


Desde a mais tenra infância rapadura eu comi

Cresci em meio a plantações e também as fiz

Junto com outras mulheres a moenda eu vivi

A cana-de-açúcar crescendo sempre foi o que vi

No meio de outras crianças nos canaviais eu corri

Aprendi a puxar alfinin e depois com outros comi

Na moenda da cana o convívio aprendi

Quando busco na memória os fins de tarde infantis

Encontro muita alegria naqueles dias gentis.

Rapadura, alfinin, batida, garapa ou mel

Tudo me faz lembrar de dias que não foram cruéis

Foram sim bem vividos, divertidos e lambuzados ao léu.

Mel de cana-de-açúcar, e muitos risadas embaixo de um

belo céu.



Referências:

AMARAL, Luis. HISTÓRIA GERAL da AGRIRICULTURA BRASILEIRA. No tríplice aspecto, POLITICO-SOCIAL-ECONOMICO. São Paulo: Editora Nacional, 1960.

KASPAR, Katerina Blasques. Gastronomia e literatura na formação da identidade nacional. IN: Revista de Comportamento, Cultura e Sociedade Vol. 4 no 2 – março de 2016, São Paulo: Centro Universitário Senac. ISSN 2238-4200.

KANT DE LIMA, Roberto. Pescadores de Itaipu: meio ambiente, conflito e ritual no litoral do Estado do Rio de Janeiro. Niterói: EDUFF, 1997.

MARCHIORO, Marcio. Questão indígena no Brasil: uma perspectiva histórica. Curitiba: Intersaberes, 2018.


Luzimar Soares é historiadora (PUC-SP).

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