Guarulhos, 01 de setembro de 2023.
Luzimar Soares*
“A ausência de povo. Eis o pecado original da República. Quando, em meio à crise de nossos dias, assistimos ao aumento da descrença nos partidos, no Congresso, nos políticos, de que se trata se não da incapacidade que demonstra até hoje a República de produzir um governo representativo de seus cidadãos?”
José Murilo de Carvalho.
No ultimo 13 de agosto, a comunidade cientifica teve um grande motivo para se enlutar, aos 83 anos (quase 84, faria aniversário no dia 08 de setembro), chegou ao fim a vida do imortal da Academia Brasileira de Letras, e da Academia Brasileira de Ciências, além de professor, historiador e cientista político, vítima da enfermidade que ceifou milhares de vida só no Brasil.
Crédito da imagem: UFRJ.
Quando se fala de alguém com a contribuição dessa magnitude para uma sociedade, em especial uma sociedade como a brasileira que ainda no ano de 2023 é o tempo todo bombardeada com desinformações de todos os tipos, tendo sua gente diminuída, com discursos de parlamentares que tentam o tempo todo descredibilizar a educação e a ciência, é quase impossível mensurar a importância da contribuição de um cientista como José Murilo de Carvalho.
Aqui gostaria de lembrar que apesar de não ser especialista em José Murilo, sou apaixonada pela ciência e em especial pela História, sendo assim, minha admiração por este cientista vai muito além de ler seus escritos, e inclui o respeito pela capacidade de continuar na pesquisa, de persistir, de enfrentar e de escrever obras como Forças Armadas e Política no Brasil, originalmente publicada em 2005, revista, revisitada e ampliada sendo relançada a luz dos novos acontecimentos.
O livro acima citado, traz em seu arcabouço uma série de investigações e discussões sobre a presença dos militares na nossa politica que precisam ser discutidas e que influenciam os rumos das nossas instituições, a intervenção dos militares na vida política do país, criou o que o autor chama de circulo vicioso.
A manutenção do papel moderador das Forças Armadas na Constituição atual se deveu à pressão exercida pelo ministro do Exército, general Leônidas Pires Gonçalves. Mas é sintomático que não tenha havido sequer uma tentativa de mudança nos 34 anos de governo civil que se seguiram. Parece haver um acordo tácito em torno da ideia de que a República ainda precisa de bengala. Não por acaso, chefes militares repetem sistematicamente que é seu dever constitucional intervir quando julgarem que as instituições correm risco. Cria-se, desse modo, um circulo vicioso: as Forças Armadas intervêm em nome da garantia de estabilidade do sistema político; as intervenções, por sua vez, dificultam a consolidação das práticas democráticas. Estamos presos nessa armadilha e não conseguiremos escapar dela se não construirmos uma economia forte, uma democracia includente e uma República efetiva. Não o conseguimos em duzentos anos de vida independente, e o tempo joga contra nós.
Essa análise mostra bem como o historiador percebeu ao longo de seus estudos a presença das Forças Armadas na vida política do país, como a democracia ainda é frágil no Brasil, e a necessidade de revermos os papeis das Forças Armadas dentro da política. As intervenções se acumulam e parecem não ter fim, militares dos três poderes, vira e mexe vêm a público expressar suas opiniões, dando recados em tons ameaçadores como o relatado por José Murilo de Carvalho.
No dia 3 de abril de 2018, às vésperas do julgamento pelo Supremo Tribunal Federal de pedido de habeas corpus a favor do ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva, o comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, postou em seu twitter a seguinte frase: “Asseguro à nação que o Exército brasileiro julga compartilhar o anseio de todos os cidadãos de bem de repúdio à impunidade e de respeito à Constituição, à paz social e à democracia, bem como se mantém atento às suas missões institucionais”. A manifestação era grave porque, embora falasse de respeito à Constituição, na realidade a agredia porque pressionava um dos ter poderes da República, quando a Carta Magna manda que as Forças Armadas os garantam.
Com sua sabedoria impar e capacidade investigativa invejável, o cientista tratou de um tema extremamente importante, sensível e por que não dizer espinhoso, e relança em momento de polarização exacerbada uma obra que já nasceu clássica. Não será possível uma investigação sobre a presença das forças armadas na democracia brasileira sem passar pelos escritos do professor, cientista, historiador e imortal.
A importância de José Murilo de Carvalho para as ciências sociais no país é grandiosa, a apresentação dele na página da Academia Brasileira de Ciências traz parte das conquistas e trabalhos desenvolvidos pelo cientista, todavia, é sabido que sua contribuição é muito mais do que seus títulos. Como estudioso, se preocupou com o social, de maneira a ir fundo nas suas pesquisas sobre os direitos dos cidadãos. Em sua obra Cidadania no Brasil: O longo caminho, disserta sobre o que são os direitos das pessoas e da impossibilidade da dissociação desses direitos. Em uma de suas afirmações, lê-se:
Finalmente, há os direitos sociais. Se os direitos civis garantem a vida em sociedade, se os direitos políticos garantem a participação no governo da sociedade, os direitos sociais garantem a participação na riqueza coletiva. Eles incluem o direito à educação, ao trabalho, ao salário justo, à saúde, à aposentadoria. A garantia de sua vigência depende da existência de uma eficiente máquina administrativa do Poder Executivo. Em tese eles podem existir sem os direitos civis e certamente sem os direitos políticos. Podem mesmo ser usados em substituição aos direitos políticos. Mas, na ausência de direitos civis e políticos, seu conteúdo e alcance tendem a ser arbitrários. Os direitos sociais permitem às sociedades politicamente organizadas reduzir os excessos de desigualdade produzidos pelo capitalismo e garantir um mínimo de bem-estar para todos. A ideia central em que se baseiam é a da justiça social.
Por fim, gostaria de expressar meu profundo agradecimento ao imortal José Murilo de Carvalho que com sua genialidade nos ensinou que para sermos cidadãos plenos, precisamos de justiça social.
Referências:
CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil. O longo Caminho. 3ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
CARVALHO, José Murilo de. Forças Armadas e política no Brasil. São Paulo: Todavia, ed. atualizada e revisada, 2019.
SPAGNA, Julia di. José Murilo de Carvalho: como usar ideias do historiador na redação. Disponível em: https://guiadoestudante.abril.com.br/redacao/jose-murilo-de-carvalho-como-usar-ideias-do-historiador-na-redacao/. Acesso em: 27 jun 2023.
*Luzimar Soares é historiadora (PUC-SP/USP).
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