Rio de Janeiro, 15 de janeiro de 2023.
Vicente Saul*
Em abril de 1976 Gal Costa tem 30 anos e às vésperas dos 10 anos de carreira. Moradora do bairro e frequentadora assídua, pela manhã, da praia de Ipanema, em frente à rua Joana Angélica, no Rio de Janeiro. Faz análise há um ano e meio. Costuma ir ao cinema e ao teatro. Continua se guiando pelo modelo anticonvencional para se vestir mesmo em entrevistas. Assiste a novela “Pecado Tropical”, de Janete Clair, no horário das 20 horas na TV Globo. Não tem hora para acordar e tem dias que almoça às onze horas da noite (Folha de São Paulo, 23/4/1976, p. 39).
Capa do Cd Gal canta Caymmi, Gravadora Phonogram/Philips,
originalmente lançado como LP, vinil, em 1976.
Acervo pessoal.
Está acompanhando os “relativamente novos” compositores Luiz Melodia, Jorge Mautner e Raul Seixas e muito interessada na gravação de Elis Regina para a canção “Como nossos pais”, de Belchior, lançada no disco “Falso Brilhante”. A vida amorosa vai bem, “comprometida, mas com alguma disponibilidade” (Folha de São Paulo, 23/4/1976, p. 39). Planos futuros? Ela, Caetano Veloso, Gilberto Gil e Maria Bethânia começarão uma série de shows em Porto Alegre que os juntará no palco 10 anos depois, mas ainda em fase de conversas entre os amigos. Hoje em dia sabemos que esse encontro resultaria a turnê e o LP “Doces Bárbaros”.
Os repórteres que acompanham sua carreira notam uma diferença de postura. Antes a jovem Gal era tímida e retraída nas entrevistas, se limitando as respostas curtas, e aparentemente ensaiadas. Agora aos 30, Gal está segura de si, responde aos jornalistas de forma desenvolta e quase não deixa pergunta sem resposta.
A imprensa da época diz que Gal está “solidamente instalada entre as melhores intérpretes da música popular brasileira (Folha de São Paulo, 26/4/1976, p. 23). Nesse momento lança seu oitavo disco e o primeiro LP dedicado inteiro para um compositor. O homenageado é Dorival Caymmi. Ao longo da carreira ela dedicará outros discos para grandes compositores, como para Ary Barroso (1980) e para Tom Jobim (1999).
Nada é por acaso nas escolhas de uma artista, e não seria diferente com Gal Costa. Seguindo uma sugestão de Roberto Menescal, então diretor da gravadora Philips, ela dedica o LP do ano de 1976 e os shows para a obra de Dorival Caymmi, mas Gal afirma que é “completamente guiada pela intuição, pelo coração, que é o que sempre vence” (Folha de São Paulo, 23/4/1976, p. 39). Lembrando que ela sempre amou Caymmi e escolheu todas as canções do show e do disco. A escolha não foi fácil pois ouviu todos os discos do compositor que lhe foram emprestados por Hermínio Bello de Carvalho.
Em meados da década de 1970, uma artista do quilate de Gal Costa gravar um disco inteiro dedicado ao compositor baiano Caymmi contribuiu, e muito, para trazê-lo em destaque para uma geração que pouco o conhecia, “recolocou o compositor dentro do núcleo ativo da música popular brasileira” (Folha de São Paulo, 26/4/1976, p. 23).
Vale lembrar que no ano anterior, em 1975, a própria Gal Costa gravou “Modinha para Gabriela”, de Dorival, tema de abertura e da protagonista da novela “Gabriela”, de Walter George Durst, baseada na obra de Jorge Amado, com direção de Walter Avancini, exibida pela TV Globo entre 14 de abril e 24 de outubro de 1975. A canção de Caymmi na voz de Gal caminhou junto, no imaginário nacional, com a atuação de Sônia Braga como a personagem título ao longo dos 132 capítulos. Foi Caymmi quem escolheu Gal para gravar e ele ressalta “já basta ter que ouvir a minha música todo o santo dia na TV, já imaginou se não fosse bonito? Mas com a Gal cantando eu tinha gosto de ouvir” (O Globo, 26/1/1976, p. 37).
Cd Gal canta Caymmi, Gravadora Phonogram/Philips,
originalmente lançado como LP, vinil, em 1976.
Acervo pessoal.
Alguns dos melhores momentos da carreira de Gal podem ser encontrados nos discos. E nas dez canções do LP “Gal Canta Caymmi” temos a confirmação disso. As fotos de Tereza Eugênia colaboram para o belo resultado visual do disco. A crítica reconhece “o domínio e a técnica vocal incrivelmente afinados, absolutos no gênero escolhido pela artista” (Folha de São Paulo, 26/4/1976, p. 23).
Os arranjos de Perinho Albuquerque e João Donato dão novas nuances para as canções. As escolhas de Gal para o disco mostram as mudanças na obra de Caymmi desde as canções do mar (como “Pescaria”, “O vento”, “Festa de rua”, “Rainha do mar” e “Dois de Fevereiro”), aos temas urbanos, amorosos e folclóricos. A interpretação e direção musical oras seguem pelo ritmo e balanço, quase nas ondas do mar, oras soa intimista e romântica, como nos sambas-canções “Só louco” e “Nem eu”. Suas modulações vocais que a eternizariam como intérprete estão presentes no contracanto em “Pescaria (Canoeiro)”, versão impressionante pela técnica vocal e intensidade. Segundo os próprios baianos, se você quer fazer um “Vatapá” é só ouvir a canção homônima, e na voz de Gal se torna um prazer maior ouvir uma receita. Outra canção sobre a identidade baiana é “São Salvador”. “Peguei um “Ita” no Norte” retoma o tema da migração para o Rio de Janeiro. Não são necessárias muitas audições do disco para ter certeza que Gal restituiu “a pureza de seu canto” como vinha sugerindo Caetano Veloso.
Grande parte da imprensa elogia o disco. Sergio Cabral destaca que “não haveria qualquer dificuldade para fazer um bom disco com as músicas de Dorival Caymmi e a voz de Gal Costa. Bastaria não complicar” e completa ““Gal canta Caymmi” só não leva todas as estrelinhas pela dobra da voz em “Dois de Fevereiro”. Foi a única vez que a produção tentou alguma complicação. Não era preciso” (O Globo, 22/4/1976, p. 32). A voz dissonante é José Ramos Tinhorão que afirma que o LP registrou a obra de Caymmi em ritmo de Jovem Guarda (!?), embora reconheça que ela é uma boa cantora. Em entrevista a própria Gal rebate o crítico argumentando que para ele “a música popular brasileira limita-se apenas a três nomes: Nelson Cavaquinho, Ismael Silva e Clementina de Jesus. O que passar disto é deturpação, alienação, distorção” (Folha de São Paulo, 23/4/1976, p. 39).
No mês de janeiro de 1976 Gal e Caymmi começam os ensaios para o show que fariam juntos no Rio de Janeiro. Ela lembra que esteve pela primeira vez com Dorival num show dele, em Salvador. E justamente na primeira vez que foi para a capital baiana ainda adolescente e na companhia de Caetano e Bethânia. A fã encontra o ídolo, mas dali para frente eles se aproximaram, a ponto de Caymmi ressaltar que a interpretação dela para “Oração de Mãe Menininha” é maravilhosa. A banda que os acompanha é conduzida por João Donato que também dirige o show. Em um ensaio, Donato questiona o tom tocado por Dorival no violão, ao que Caymmi responde... “Não tem tom não, João, veja aí no seu piano que tom é isso porque o meu violão nunca tem nada a ver com coisa alguma, ele está afinado em outra galáxia” (O Globo, 26/1/1976, p. 37).
Em abril de 1976 Gal se apresenta com Caymmi no Palácio das Convenções do Parque Anhembi, na cidade de São Paulo. A crítica elogiou muito a atuação de Dorival, mas não foi tão receptiva com a cantora, mas o público teve uma reação maciça favorável para a dupla na capital paulista, assim como teve no Rio e em Salvador.
Na entrevista que Gal e Caymmi concederam juntos, ela afirma que ele é a “paixão musical de todo o pessoal que faz música no Brasil”. E ele completa “dito assim com tanto carinho, sobretudo por Gal, uma pessoa de quem tanto gosto, eu me sinto lisonjeado”. Dessa vez é Dorival Caymmi que responde ao crítico José Ramos Tinhorão: “Ah também amaldiçoaram meu traje de cetim e lamê, bem estilo Praça Tiradentes, que uso no show. No fundo, tenho certeza, a massa que vai aos teatros gosta é do que brilha” (Folha de São Paulo, 23/4/1976, p. 39).
E assim como Dorival, “Gal cantando Caymmi” brilha, brilhou e brilhará...
Referências bibliográficas:
BAHIANA, Ana Maria. Almanaque Anos 70. São Paulo: Ediouro, 2006.
XAVIER, Nilson. Almanaque da Telenovela Brasileira. São Paulo: Panda Books, 2007.
*Vicente Saul é Bacharel e licenciado em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2000), mestrado em História das Ciências pela Casa de Oswaldo Cruz – Fundação Oswaldo Cruz (2006) e doutorado no Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais (PPHPBC) – Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil – CPDOC-FGV (2013). Historiador e pesquisador atuante no mercado editorial, meio audiovisual e produtoras culturais. Lecionou em universidades particulares. Tem experiência na área de História e Ciências Sociais, com ênfase em História do Brasil Republicano.
Adorei a matéria.