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  • Foto do escritorAndré Sena

A curva do avião: entre Brasília e Manila.

Toronto, 02 de janeiro de 2023.

André Sena*


Foi já dentro dos contornos políticos da Revolução do Poder Popular (também conhecida como La Edsa) que o presidente Ferndinand Emmanuel Edralín Marcos entrava a bordo de um avião da Força Aérea dos Estados Unidos, em direção ao lugar seguro mais próximo para si, sua esposa e seu arsenal de sapatos caríssimos: o Havaí. Sem redes sociais à época, foi pelos jornais que soubemos, naquele ano de 1986, que sua mais ardente opositora, Corazón Aquino, chegava ao poder nas Filipinas. Marcos vencera nas urnas, mas a lisura das eleições foi denunciada e a fraude internacionalmente reconhecida, o que acabou por dar a vitória à chapa contestadora.


Já fazia três anos que a Revolução Amarela (outro nome pela qual os levantes contra Marcos ficaram conhecidos) se havia iniciado, considerada por muitos analistas internacionais como uma revolução de veludo, sem milícias nem levantes armados, mas com focos de contestação popular por todo país, e que sacudiram a Avenida Epifanio de los Santos, no coração de Manila, na última manifestação de resistência civil que levou a queda do presidente.



Crédito da imagem: Joel Nito/Vice.com.



Fugir para o Havaí, buscando a proteção dos Estados Unidos, era mais do que simplesmente uma estratégia; o caráter simbólico da escapada confundia-se com a extensão proposital de uma relação com a antiga metrópole, na medida em que as Filipinas, antes de sua independência, foram objeto da política imperialista de “protetorados” dos Estados Unidos, posta em prática durante 48 anos de ocupação colonial, desde 1898. Naquele ano, vencida a Guerra Hispano-Americana, as 7.100 ilhas que formam hoje um país independente, passaram ao domínio norte-americano até 1946. Eram os tempos tão bem descritos por Eric Hobsbwawm, James Joll e Paul Kennedy, onde a diplomacia da canhoneira, a paradoxal expansão e concentração do capital industrial em verdadeiros bolsões de riqueza, e a militarização das grandes potências internacionais produziram uma belle époque de impérios e imperialismos.


A fuga de Ferdinando Marcos de seu país era, entretanto o verão de uma única andorinha. O apoio dos Estados Unidos no frete do vôo entre Manila e Oahu não se traduzia em um apoio realmente genuíno ao presidente em fuga; pelo contrário: os americanos preferiam observar a ascensão de Corazón Aquino como um novo momento democrático a ser explorado no país, muito mais ciosos dos interesses americanos na região, do que necessariamente preocupados com laços de lealdade com uma figura política broxa como Marcos.


Mais do que isso, os Marcos não deixavam atrás de si nenhum rastro de apoio popular capaz de convidá-los de volta ao poder no futuro. O ressentimento que se instalou no imaginário popular contra o presidente e contra a extravagante primeira-dama, criou raízes profundas e ofuscou qualquer possibilidade do surgimento de uma resistência 'patriótica’ conservadora, de caráter regressista, que acendesse na sua cada vez menor entourage política a possibilidade de uma restauração de poder ou oposição séria ao governo de Aquino: a revolução amarela efetivamente triunfara, ao menos naquele momento.


O presidente que desembarcava no Havaí fugia de seu próprio povo; desembarcava combalido, pálido e sem esboçar nenhum sorriso cordial ao cumprimentar, ainda no aeroporto, o então governador do Havaí, George Aryioshi. Além da primeira-dama Imelda Marcos, acompanhavam o Presidente seus três filhos, alguns parentes próximos e funcionários leais. A postura pouco sorridente de Marcos no aeroporto explica-se com facilidade: a pressão dos Estados Unidos para que deixasse o país era imensa, e o asilo que Ronald Reagan oferecia ao Presidente e sua família não correspondia a qualquer forma de anuência política.


Quase 40 anos depois, ao ver o avião presidencial brasileiro deixar Brasília, no dia 30 de dezembro de 2022, não pude deixar de lembrar do que eu adolescente havia assistido pela televisão em 1986. Dessa vez era pelo Instagram que observava atônito, mas nada surpreso, o vôo que levava Jair Bolsonaro, de Brasília a Miami, assim como sua chegada aos Estados Unidos, horas depois, abatido, mas sorridente, ao lado de uma primeira-dama carente dos sapatos de Imelda, mesmo assim lembrando-me de alguma maneira uma certa postura imeldiana periférica. Parecia bem mais abalada do que o ainda Presidente brasileiro, emudecida, e talvez em busca das línguas pentencostais que falara, quando o ministro terrivelmente evangélico, que ela pessoalmente buscou ajudar a chegar ao Supremo, fora confirmado pelo Congresso.


Há, contudo, diferenças imensas entre os dois presidentes, em suas respectivas aventuras aéreas. Além do tempo, objeto essencial de análise dos historiadores, há ainda as diferenças históricas, políticas e culturais entre os dois países, outro aspecto que historiadores sempre levam em conta ao construir suas pesquisas. Mas o que chama mesmo a atenção é o que Bolsonaro deixa plantado no Brasil, algo que fora impossível a Ferdinando Marcos no caso filipino.


Seus apoiadores, que passaram os últimos dois meses a alardear toda sorte de clamores, pedidos de socorro, propostas putschistas e intervencionismo militar, embora momentaneamente aborrecidos com o que entendem ter sido uma descarada capitulação presidencial, provavelmente voltarão a se reagrupar, especialmente em torno de uma agenda de costumes, mas não apenas dela: a chegada do partido vencedor ao poder neste momento representa para estas clivagens a restauração de uma rede de corrupção e açambarcamento das estatais que arrombaram o país. Na perspectiva de boa parte dos vencidos de 2022 a roubalheira voltará, o teto de gastos será furado, as pedaladas fiscais tornarão a acontecer de forma incontornável (algo que nunca cessou de fato na gestão econômica brasileira), além evidentemente de problemas mais graves como o “fantasma do comunismo”, disfarçado de viadagem escancarada, ideologia de gênero e racialização nacional.


Marcos jamais contara com um apoio tão articulado em Manila e nas outras capitais de seu país. Vazou e deixou vazio os espaços de poder que ocupara por tantos anos. Não é esse o caso brasileiro.


Além disso, as forças parlamentares que se organizaram nas Filipinas de Corazón Aquino foram as que chegaram ao poder ao seu lado, não contra ela. O Brasil mantém sua tradição de ingovernabilidade esquizofrênica ao eleger um Congresso pendente a direita (embora haja forças de esquerda importantes que se elegeram com Lula) de matriz conservadora, ao mesmo tempo que reconduzem ao Planalto aquele que hoje é, sem a menor sobra de dúvidas, o símbolo da esquerda brasileira. O presidencialismo de coalizão será tão difícil quanto inescapável. Aquino tinha o apoio parlamentar de seus revolucionários, e de velhos parceiros que lutaram ao lado de seu pai no processo de independência das Filipinas. Lula tem Damares, Mourão e tantos outros elementos do ancien régime.


A pacificação nacional da qual tanto se fala, com a chegada de Lula ao poder pela terceira vez, dificilmente se vivenciará. A frágil democracia filipina construída por Corazón Aquino também não resistiu muito tempo aos sobressaltos e contingências das forças políticas de seu país. Mas a era de entusiasmo e esperança que seus primeiros anos de governo suscitaram não serão compartilhados por nós por mais tempo do que as 24 horas da festa da posse. O país segue radicalmente polarizado, desprovido da obra que a Revolução Amarela produziu no caso do país asiático em questão. Bolsonaro pode até neste momento ser uma figura meia-bomba, mas o bolsonarismo seguirá por muitos anos imbroxável no Brasil.


O avião fará, invariavelmente a curva. Ou o Brasil não é mais o Brasil, com tudo o que tem de ruim, de pior, e eventualmente de bom.


Nunca, de sensato.


REFERÊNCIAS:

REID, Robert. GUERRERO, Eileen. Corazon Aquino and the Brushfire Revolution. Lousiana State University Press, 1995.

ZICH, Artur. The Marcos Era. The Wilson Quaterly. Vol.10, n.3.

KENNEDY, Paul. Ascensão e Queda das Grandes Potências. Ed. Campus, 1989.

RÉMOND, René. Uma Introdução à História do Nosso Tempo. Ed. Apicuri, 2015.


*André Sena é historiador (UERJ).




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