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A bailarina dos pés descalços: Isadora Duncan no Rio de Janeiro de 1916

Rio de Janeiro, 15 de setembro de 2022.

Luciene Carris*


Recentemente um amigo historiador me confidenciou o desejo de escrever um espetáculo teatral, na verdade, uma espécie de diálogo entre duas figuras curiosas das primeiras décadas do século XX, trata-se de um recorte específico de um determinado ano, um acontecimento que marcou o imaginário carioca. O certo é que tais figuras deixaram um legado interessante, pois, a contribuição de cada um até hoje é inegável. Em 1916, depois de se apresentar na Argentina e no Uruguai, desembarcava em terras cariocas, a bailarina norte-americana Isadora Duncan, considerada uma das precursoras da dança moderna, e que, por aqui, teve um encontro nada furtivo com o cronista da cidade, o jornalista e escritor João do Rio, pseudônimo de Paulo Barreto.





Fon-Fon, ed. 35, 1916, p. 27.

Crédito: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional



Nascida na Califórnia em 1877, Ângela Isadora Duncan, como a maioria das bailarinas, ingressou na dança ainda criança, e aos quinze anos já atuava como professora de danças de salão. O interesse pela Grécia Antiga, bem como o fascínio pela Renascença, levou a jovem a desenvolver um estilo de dança “livre e natural”, a “natural dance”, pautado nos movimentos naturais do corpo humano. Ao que parece, as viagens pelos países europeus inspiraram a bailarina a radicalizar, o que era conhecido como o balé até então. Buscou nas sinfonias de Chopin e de Beethoven novas motivações estéticas, assim como, descobriu a filosofia de Friedrich Nietzche, se apropriou das ideias de Kant e Schopenhauer. Em 1903, pronunciou um discurso em Berlim, que defendia este novo estilo definido como “A dança do futuro”. E assim, a dança ganhava uma expressão que ela assumia como religiosa, pois considerava que todo movimento possuía uma força espiritual. De acordo com Lemos,


A dança de Isadora - com elementos predominantemente impressionistas - considera o tronco como fonte de expressão de emoções mais elevadas, coisa que teve sua origem no delsartismo, e que permitiu à mulher a expressividade corporal retirada no ballet clássico. Além de uma revolução estética, Isadora possuía a consciência da necessidade educacional do corpo através dessa estética corporal influenciada por Nietzsche. Para Nietzsche o corpo é um campo neutro entre o indivíduo, suas necessidades e o mundo exterior (LEMOS, 2009, p. 02).


Mas retomando ao curioso encontro entre o nosso flâneur dos trópicos e a intrépida bailarina, considerada como a “musa do século”. Isadora, que costumava dançar com túnica transparente para os seus amigos mais íntimos como o escultor Rodin, conheceu João do Rio no Teatro Municipal, depois de se apresentar no palco. A partir daí, passaram a sair pela cidade, seguidos por um séquito fiel, que gritava nas ruas: “Viva Isadora! Viva João do Rio”. A amizade romântica, ao que tudo indica, incitou fofocas e maledicências entre os muitos desafetos do autor da obra A alma encantadora das ruas, bem como escandalizou a sociedade da época. A breve passagem, a seguir, pode contribuir para a nossa imaginação sobre o encontro entre as duas personalidades, para tanto, recorremos ao excerto de uma citação da obra do teatrólogo e jornalista Carlos Maul:


Mas voltemos aos encontros românticos entre os dois panteístas, os dois estetas, que naturalmente se atraíram. Em seu livro «Pequenas Histórias Verdadeiras do Rio Antigo» (Edições de Ouro, 1965), Carlos Maul escreve: «João do Rio mereceu as simpatias afetivas de Isadora. Num hotel da Rua D. Luísa — hoje Cândido Mendes —, perto da estação dos bondes de Santa Teresa no Curvelo, estava ela hospedada, e ali se encontravam os dois. Não faziam segredo de seus colóquios, e às vezes visitavam os sítios pitorescos da metrópole. Corria a versão de que Isadora dançara, quase nua, próximo das furnas da Tijuca, para encanto do escritor que traduzira a «Salomé», de Oscar Wilde. Não confirmo nem nego a versão. Admito-a possível. Tanto um como outra seriam capazes de promover um quadro desse gênero dentro da natureza. Aliás, a própria Isadora deixa entrever nas suas «Memórias» que João do Rio foi para ela algo mais do que um admirador entusiasta de sua arte...» (GOMES, 1981, p. 149).


O então diplomata e memorialista Gilberto Amado, por sua vez, revelou também a sua impressão sobre o casal de amigos. À convite de João do Rio foi a um jantar na sua casa-biblioteca localizada na Avenida Gomes Freire. Aliás, a ceia foi especialmente encomendada do Restaurante Sul América, localizado na rua Sete de Setembro. Não há maiores detalhes sobre o menu escolhido, porém a ceia regada a champanhe, aparentemente, deixou todos bem animados:


Fui o único convidado. Horas interessantes! Que espetáculo a conversa das duas celebridades, a mundial e a brasileira! A dançarina exprimia-se num francês beliscado de guturalidades, numa voz — das mais belas que até hoje ouvi — de uma pureza mágica de timbre. Paulo, misturando francês, inglês e português, numa algaravia incrível, mas completamente à vontade, tratava a célebre dançarina, musa do século, como se ela fosse sua irmã e com ela tivesse convivido desde a infância. Por seu lado, a criatura fantástica era a naturalidade mesma (GOMES, 1981, p. 149).


Depois da ceia o trio partiu em direção à Cascatinha na Floresta da Tijuca, “e ali, sob o luar, como se estivesse na própria Grécia, a ninfa dos bosques dançou, com sua transparente túnica escarlate”, assim, comentou Gilberto Amado sobre a musa grega. A bailarina de pés de descalços, como também fora apelidada, foi alvo da pena das revistas ilustradas, como a Fon-Fon, em razão, talvez mais pela sua passagem pela cidade do que, propriamente, pelo espetáculo de dança no Municipal. Não por acaso, foi Americo Facó que resumiu poeticamente o seu passeio por uma praia da orla da zona sul carioca, afinal, o jornalista era um dos integrantes daquele seleto grupo de amigos. Nas suas palavras “Isadora avançava serenamente pela praia, seguida do pequeno cortejo de seus amigos”, mais adiante, “Isadora avançava, e nós a seguíamos na obediente fascinação de quem atravessa um mistério”, e “Isadora dançava”, magnetizava os presentes, e assim, subitamente: “Isadora lançou ao chão o grande manto que a envolvia; e não foi só a minha alma, foram também os meus olhos que viram a poetisa de Lesbos na inviolável nudez da sua beleza e em todo o imenso desespero da sua paixão” (FON-FON, 1916, p. 19).


Ao pesquisar para esse breve texto, me dei conta do quanto Duncan foi avant-garde nas artes e na vida. A bailarina que se inspirava na natureza, na filosofia, na emoção, no plexo solar, escreveu a sua autobiografia intitulada Minha vida, que revela o seu encontro com o cronista e a cidade. É bem verdade que, ao longo de sua vida, passou por situações difíceis como a perda de seus filhos, e veio a falecer de maneira trágica na cidade francesa de Nice com cerca de cinquenta anos. A sua longa echarpe bizarramente se prendeu nas rodas do seu veículo conversível no dia 14 de setembro de 1927. Aliás, seis anos antes, João do Rio, em 1921, sofreu um infarto fulminante em um táxi na rua do Catete, e teve a vida abreviada aos trinta e nove anos. Isadora, a musa precursora de uma dança passional e libertária, que se espalhou pelo mundo, se encontrou, casualmente, com João do Rio, que bem retratou na sua pena, como uma pintura, a realidade social do Rio de Janeiro do início do século XX, daí uma amizade brotou. Bem que imagino, ambos, em algum lugar conversando, rindo e dançando nas areias de uma praia qualquer ou em alguma cachoeira remota. E, assim, aguardo ansiosa o tal do diálogo entre essas duas figuras, que deixaram um legado especial, - o inusitado casal João do Rio e Isadora Duncan - , assim como inspiraram, ainda inspiram tantos outros que vieram depois.


Referências:

FACÓ, Americo. A incomparável. Fon-Fon, Rio de Janeiro, 02 de setembro de 1916, ed. 035. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/259063/25763 Acesso em: 14 set. 2022.

LEMOS, Anna Paula. O Apolíneo e o Dionisíaco na Dança contemporânea. Quando as forças da natureza se encontram com Isadora Duncan. Revista Garrafa, UFRJ, Rio de Janeiro, v. 4, n. 8, 2009. Disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/garrafa/article/view/7479/6006 Acesso em: 12 set. 2022.

LEMOS, Danilo. João do Rio. Revista Literária, UFMG, n. 16, 1981. Disponível em: http://www.periodicos.letras.ufmg.br/index.php/literaria_corpo_discente/article/view/9453/8212 Acesso em: 12 set. 2022.

RODRIGUES, Antonio Edmilson Martis. João do Rio: a cidade e o poeta. Rio de Janeiro: FGV, 2000.


*Luciene Carris é historiadora (UERJ).

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