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  • Foto do escritorAndré Sena

1889 e o momento decisivo de Benedito Calixto.

Toronto, 17 de novembro de 2022.

André Sena *


Foi o fotógrafo e humanista francês Henri Cartier-Bresson quem definiu um dos conceitos mais caros à arte de se registrar um momento, seja ele histórico ou não (e pode ser que tudo seja histórico se não delegarmos à Academia o poder de fazer essa seleção). O conceito criado por Cartier-Bresson, conhecido como le moment décisif, refere-se precisamente à mágica exata do momento, aquilo que se imprime no tempo imediato, no calor da hora, ou no que tão bem Clarice Lispector define em Água-Viva como o ‘instante já.’




Crédito da imagem: Sérgio Brisola.



Há quem sustente, entretanto, que ao criar o conceito de “momento decisivo”, Bresson não desejava se prender a ideia de uma espontaneidade criativa como único recurso possível de registro da realidade instantânea. Michael Rubin, fotógrafo e editor do Podcast Everyday photography, Every day, argumenta que a fabricação de uma imagem não é capaz de dar conta da essência integral do que foi registrado e fotografado. Haveria, portanto, um limite saudável para o conceito bressoniano de momento decisivo, onde a genialidade do espontâneo, registrada pela arte do fotógrafo, não necessariamente nos informaria de maneira exatamente profunda sobre a historicidade do objeto (ou sujeito) registrado.


Ao ler os comentários de Michael Rubin sobre Cartier-Bresson, pensei imediatamente no grande pintor brasileiro Benedito Calixto, e em uma de suas obras mais famosas A Proclamação da República, um belíssimo óleo sobre tela, pintado apenas 4 anos depois da quartelada republicana de 15 de novembro de 1889, que derrubou a Monarquia e instaurou no Brasil uma República, naquele momento ainda claudicante e profundamente militarizada.


O quadro retrata o instante-já da Proclamacão de 15 de novembro, dando a ela a solenidade militar e a rispidez que toda caserna pode, sob o manto nebuloso da hierarquia e da disciplina, vir a inspirar. A centralidade do quadro deseja comunicar a clareza e a obviedade de quem está no comando da cena: a alta oficialidade do exército imperial, agora revestido da capa republicana, com Deodoro em primeiro plano, e o marechal de ferro, Floriano Peixoto em segundo. A presença dos cavalos, pincelados em movimento eufórico, projeta um tom bonapartista ao ato, e contrasta com a inércia dos seus montadores, perfilados, petrificados, salvos apenas pelo gestual da mão segurando a cobertura em saudação ao povo, que não está nem no quadro nem na própria Proclamação.


O tratamento imagético que Benedito Calixto dá ao elemento civil na pintura pode ser revelador, para olhos mais atentos e interessados no episódio que inaugurou o Brasil que hoje conhecemos: estão a pé e não montados, privados da impressão heroica que uma montaria poderia lhes conferir. O tom coadjuvante imposto aos civis confirma a percepção de Calixto do 15 de novembro, como um movimento quase que exclusivamente da soldadesca, garantido pelos canhões apontados para o centro da cena, onde os civis rodeiam cordatamente Deodoro da Fonseca e seus grandes, que próximo a ele se encontram perfilados. A fumaça que Calixto criou povoando boa parte da pintura, provoca no quadro um efeito ainda mais interessante, combinando a nebulosidade de uma República inesperada, com quem sabe, disparos proféticos, em um futuro próximo, com a Armada bombardeando, da Guanabara, o Rio de Janeiro.


O pintor paulista que nos legou o quadro A Proclamação da República, teve uma boa parte de sua formação artística obtida na Europa, graças a bolsas de estudo que a elite imperial lhe concedeu, especialmente o Visconde de Vergueiro, seu principal mecenas. As paisagens são seu grande legado, especialmente porque Benedito Calixto era um apaixonado pela ciência da cartografia, algo que podemos ver claramente em obras suas como Paisagem – Serra de Santos, Praia com Pescadores, obra de 1901, ou Praia de São Vicente, três quadros de grade beleza. Contudo nenhum destes se compara a Enchente na Várzea do Carmo, pintado um ano antes de A Proclamação, mas com o mesmo toque decisivo para o qual Cartier-Bresson nos chama atenção.


Não apenas a cartografia era uma de suas paixões. Supreendentemente Benedito Calixto escreveu obras históricas, especialmente sobre o período colonial na obra Capitanias Paulistas, lançada no ano de sua morte, em 1927, e que expressa o profundo conhecimento que Calixto tinha do litoral brasileiro, especialmente o da região sudeste. A “máquina de fazer quadros”, apelido que lhe deram em razão de sua volumosa produção artística, dedicou-se igualmente a arte sacra e se tornou um pintor disputado por congregações e ordens religiosas a ele contemporâneas. O cristianismo era de fato, juntamente com a história e a cartografia um de seus motores estéticos mais poderosos, e Emanuel Guedes, ao apresentar a obra A arte de Benedito Calixto reforça essa questão, afirmando que o pintor conhecia sua religião tão bem como qualquer teólogo.


Em A Proclamação da República, Calixto talvez nos tenha presenteado com uma das mais fidedignas percepções do que o 15 de Novembro foi de fato, limpo das malogradas tentativas de sua mitificação posterior. O Imperador deposto emigrava para a Europa com sua família, mas o país não mudava de dono. Sobrou a fumaça dos canhões, os quepes empunhados, o entusiasmo meia bomba da tropa, tudo isso casado à obediência civil escancarada na tela. Calixto soube captar bressonianamente o que talvez nenhuma fotografia pudesse ser capaz de registrar: um golpe de Estado que abortou à Coroa e fez nascer a Bruzundanga, obcecada pela ordem, arrotando progresso.


Sobra a arte de Benedito Calixto e toda a sua beleza e pujança, ainda pouco conhecida dos brasileiros que a mesma República prometeu libertar.


REFERÊNCIAS:

ALVEZ, Caleb Faria. Benedito Calixto e a Construção do Imaginário Republicano. EDUSC, 2003.

(Vários Autores). Pintores Brasileiros. Benedito Calixto. Volume 25. Ciranda Cultural, 2016.

CAMPOFIORITO, Quirino. História da Pintura Brasileira no Século XIX. 5 Volumes. Ed. Pinakotheke, 1983.

RUBIN, Michael. The Decisive Moment: What Henri Cartier-Bresson Actually Meant.

CARVALHO, José Murilo. Os Bestializados. Ed. Companhia das Letras, 2019.


*André Sena é historiador (UERJ).

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