Rio de Janeiro, 15 de novembro de 2022.
Luciene Carris*
Celebrações, comemorações, rituais cívicos, estátuas, monumentos históricos e panteões constituem, por excelência, os “lugares de memória”, visto que são construções que “nascem e vivem do sentimento de que não há memória espontânea” (NORA, 1993, p.13). Além disso, comemorações “costumam mobilizar os governantes e a sociedade em geral, pois são sempre uma oportunidade e um convite especiais à realização de balanços, quer com objetivos de engrandecimento, que com explicita intenção crítica”, como destacou a historiadora Angela de Castro Gomes. Porém, a efeméride de 15 de novembro de 2022 foi ofuscada por outras como o Bicentenário da Independência e o Centenário da Semana de Arte Moderna, e, não por acaso, inúmeros eventos comemorativos foram realizados ao longo do ano. Particularmente, sempre considerei a data a menos interessante no nosso calendário, talvez pelo fato de não me recordar de grandes festividades nas escolas por onde passei, portanto, a data sempre passou como aquele momento de descanso com a família e amigos. Aliás, como bem resumiu Celso Castro:
O 15 de Novembro é hoje um dos feriados nacionais menos evocativos. Não há um herói a ser lembrado, como Tiradentes no 21 de Abril, nem paradas militares ou desfiles de estudantes, como no 7 de setembro. Nem mesmo uma imagem consagrada, como a da forca, ou um grito, com o do Ipiranga: apenas uma “proclamação”, um anúncio público de que a Monarquia havia sido substituída pela República. Sem luta, sem sangue, sem mortes. Para os que na época defendiam os republicanos, prova cabal de que o Império já estava há muito com os dias contados e que a nova forma de governo amadurecera no espírito do povo brasileiro. Para os monarquistas, a Proclamação fora apenas uma quartelada que inseria o Brasil no triste quadro das outras nações sul-americanas, marcadas por inúmeros pronunciamentos militares. Na expressão de Aristides Lobo, um jornalista da época, tratara-se de um evento ao qual a maioria da população assistira “bestializada, atônita, surpresa, sem saber o que significava” (CASTRO, 2000, p. 07).
A citação acima incita algumas reflexões. Não houve um “grito”, nem um “herói”, nenhuma participação popular, foi uma “proclamação”, ou seja, um anúncio ou declaração, foi algo meramente formal, e ao que parece, nem digno de se comemorar. Os seus signos foram criados a posteriori. E assim, as expressões “ordem” e “progresso” passariam a estampar a nova bandeira oficial dos Estados Unidos do Brasil em 1891, como assim, foi nomeada a mais jovem república federativa da América do Sul. Nomenclatura, aliás, que seria utilizada até 1967, quando uma nova constituição passou a vigorar sob o regime civil-militar do general da Arthur da Costa e Silva.
Em 1889, a título de exemplo, periódicos antimonarquistas da época, de grande circulação, como o jornal O Paiz e a Revista Illustrada jubilaram os novos donos do poder. Na primeira página do jornal d'O Paiz, que se autodeclarava como “a folha de maior tiragem e de maior circulação da América do Sul”, e que contava com colaboradores do porte de notórios intelectuais como Quintino Bocaiúva, Miguel Lemos, Joaquim Nabuco e Silva Jardim, anunciava: “Concidadãos! O povo, o exército e armada nacional em perfeita comunhão de sentimentos com os nossos concidadãos residentes nas províncias, acabam de decretar a deposição da dinastia imperial e consequentemente a extinção do sistema monárquico-representativo” (O Paíz, 16 nov. 1889, ed. 569, p. 01). Mas, os substantivos “concidadãos” e “povo” induzem a outras reflexões.
De acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, em 1890, a população brasileira contava com cerca de 14,33 milhões de indivíduos. Refletindo mais além, as mulheres não faziam parte da vida pública nem do universo da política, era algo considerado moralmente condenável. Além disso, a maior parte da população era analfabeta. Não podemos ignorar que a abolição da escravidão havia ocorrido há pouquíssimo tempo, em 1888, e foi negado aos ex-escravos a possibilidade de participação na vida política, e, especialmente qualquer tipo de indenização. Contudo, isto não implicava que o desconhecimento das primeiras letras, tampouco impedimentos morais ou religiosos, freassem uma espécie de “cultura política” que ocorria no cotidiano das ruas do Rio de Janeiro no final do século XIX, uma vez que:
(...) era uma cidade das ruas, na qual a cultura política popular estava envolvida com o cotidiano da experiência urbana daqueles que a habitavam. (...) As praças eram os lugares de afirmação do debate e de aumento da importância da imprensa. Bastava estar nas ruas para entrar no debate e intervir opiniões. (…) Mesmo analfabetos em sua grande maioria, os habitantes da cidade recebiam as informações, acentuando a formação de uma esfera pública em que não havia bestializados (RODRIGUES, 2008, p. 216).
Porém, representações são importantes, a criação de mitos de origem pode justificar e reforçar no imaginário coletivo uma data que não inspira muitos, portanto, possui uma função pedagógica bastante eficaz. Uma curiosa gravura inspirada no desenho de Veridiano de Carvalho apresenta uma realidade distinta. Nela, observamos populares e muitos soldados em frente à sede do periódico O Paíz, que se localizava na rua do Ouvidor. Chama a atenção a grandiosidade da via, pois foi retratada maior do que realmente a conhecemos. No centro da imagem, a atenção recai para duas figuras montadas, general Deodoro da Fonseca e Quintino Bocayuva, em dois cavalos saudando as pessoas na sacada.
Crédito da imagem: Proclamação da República : Ovação Popular ao General Deodoro da Fonseca e Bucayuva, na Rua do Ouvidor. Gravura segundo desenho de Veridiano de Carvalho. Fundação Biblioteca Nacional.
Disponível em: http://objdigital.bn.br/objdigital2/acervo_digital/div_iconografia/icon255685/icon255685.jpg
Por sua vez, a Revista Illustrada do italiano Angelo Agostini, que se utilizava de muitas charges satíricas nas suas páginas para ironizar os costumes, os hábitos, assim como, acontecimentos políticos, com extrema agilidade caprichou na edição 569, publicada no dia 16 de novembro. Publicou um suplemento anunciando os rostos dos novos ministros do novo governo bem como dedicou ao evento uma página inteira para a homenagem.
No centro da página, encontramos uma bela alegoria feminina de vestes greco-romanas e barrete frígio, além da espada, um escudo e a bandeira do Brasil. Podemos observar, ainda, o marechal Deodoro da Fonseca, que montado no seu cavalo, saúda o povo. Além das rosas espalhadas, um homem ajoelhado, o visconde de Ouro Preto, lhe entrega a coroa da monarquia. Completa a ilustração, uma legenda com o seguinte texto: “Glória à Pátria! Honra aos heróis do dia 15 de Novembro. Homenagem da Revista Illustrada”.
Crédito da imagem: Revista Illustrada, 16 de novembro de 1889, ed. 569, p. 10. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/332747b/4260 Acesso em: 05 nov. 2022.
Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional
Inspirada no modelo francês, a recém-fundada república brasileira sofreu uma batalha de símbolos e de alegorias com intuito de atingir o imaginário popular com os valores republicanos. Em busca desse ideal, as imagens, as alegorias, os símbolos e os mitos constituem os sinais mais universais e acessíveis, pois o método discursivo não era considerado suficientemente eficaz (CARVALHO, 1990). Apesar do arsenal de imagens, a insatisfação com o novo regime despontou na sociedade brasileira.
A Constituição de 1891, a primeira do regime republicano, pouco alterou a estrutura socioeconômica e política anterior, muitos segmentos continuaram excluídos, apartados, das decisões do governo. E, assim, sem a possibilidade de manifestar suas demandas em tais espaços formais de poder, as reivindicações dos homens comuns se reuniam nas ruas do Rio de Janeiro, em especial na rua do Ouvidor e adjacências, local de concentração de oficinas, de cafés, além de sede dos principais jornais, o que estimulava a radicalização e a mobilização popular em torno do republicanismo. O escritor Lima Barreto foi uma dessas vozes dissonantes. Desencantado, o autor do Triste Fim de Policarpo Quaresma, observou de perto a evolução do regime republicano, e percebeu que a república constituía um novo pacto entre as elites, com prejuízo para os grupos menos favorecidos e a manutenção da antiga ordem existente durante o regime monárquico. Policarpo, o personagem central do romance, depois de algumas situação, no calor dos acontecimentos se envolveu na Revolta da Armada em 1893, desanimado afirmava que "a vida continuava a mesma":
Sentia necessidade de rever aquelas ruas estreitas, com as suas lojas profundas e escuras, onde os empregados se moviam como em um subterrâneo. A tortuosa Rua dos Ourives, a esburacada Rua da Assembleia, a casquilha Rua do Ouvidor dava-lhe saudades. A vida continuava a mesma. Havia grupos parados e moças a passeio; no Café do Rio, uma multidão. Eram os avançados, os "jacobinos", a guarda abnegada da República, os intransigentes, a cujos olhos, a moderação, a tolerância e o respeito pela liberdade e a vida alheias eram crimes de lesa-pátria, sintomas de monarquismo criminoso e abdicação desonesta diante do estrangeiro. O estrangeiro era sobretudo o português, o que não impedia de haver jornais "jacobiníssimos" redigidos por portugueses da mais bela água (BARRETO, s.d., p. 87).
E a vida continuou, sendo a mesma ou não, o Rio de Janeiro, agora capital federal manteve a sua vocação cospomolita, as suas ruas continuaram sendo o palco de inúmeras manifestações e revoltas. A rua como sempre: o lugar de encontros, do mundo do trabalho, da vida boemia, do lazer e da diversão, demonstra que a vida não poderia e não pode parar.
Referências:
BARRETO, Lima. Triste Fim de Policarpo Quaresma. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000159.pdf Acesso em: 05 nov. 2022.
CARVALHO, José Murilo de. A Formação das Almas. O imaginário da República no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
CASTRO, Celso. A Proclamação da República. Rio de Janeiro: FGV, 2000.
MAIA, Andrea Casa Nova; CARDOSO, Luciene P. Carris; SANTOS, Vicente S. M. dos. Lições do Tempo: Temas em História e Historiografia. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2016.
RODRIGUES, Antonio Edmilson Martins. Cultura política na passagem brasileira do século XIX ao século XX. In: Mônica Leite Lessa; Silvia Carla Pereira de Brito Fonseca. (Orgs.). Entre a monarquia e a república. Imprensa, pensamento político e historiografia (1822 - 1889). Rio de Janeiro: EDUERJ, 2008.
“Proclamação”. O Paíz, sábado, 16 de novembro de 1889, ano VI, ed. 1886. Disponível em: http://memoria.bn.br/pdf/178691/per178691_1889_01866.pdf Acesso em: 05 nov. 2022.
Revista Illustrada, ano 14, ed. 569, 1889. Disponível em: http://memoria.bn.br/pdf/178691/per178691_1889_01866.pdf Acesso em: 04 nov. 2022.
*Luciene Carris é historiadora (UERJ).
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