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Foto do escritorDaiana Crús Chagas

Tupinambás e temiminós na Batalha de Uruçumirim (1567)

Atualizado: 18 de set. de 2023

Rio de Janeiro, 19 de abril de 2023

Carlos Eduardo Pinto de Pinto*

Daiana Crús Chagas**


Em 19 de janeiro de 2023 publiquei São Sebastião, Oxóssi e a história do Rio de Janeiro. Um dos retornos que recebi foi de minha amiga querida Daiana Crús, também historiadora e professora de história, que me disse ter sentido falta de mais detalhes sobre os povos indígenas naquele ensaio, sobretudo no relato sobre a batalha de Uruçumirim. Ato contínuo, a convidei para compor comigo um texto que buscasse preencher essa lacuna. A partir deste ponto, escrevemos a quatro mãos…


Escolhemos publicar nossas reflexões justamente no Dia dos Povos Indígenas porque a experiência nos mostra que, apesar da aplicação da lei nº 11.645, de 2008, que tornou obrigatório o estudo da história e da cultura indígena e afro-brasileira na educação básica, a data ainda é mais lembrada no ambiente escolar como “Dia do Índio”, desconsiderando toda a diversidade étnica e cultural dos nossos povos originários. Será que essa data, para além de todos os problemas que envolvem sua operacionalização, pode nos permitir seguir caminhos críticos que ultrapassem a “mera” celebração do estereótipo indígena? Poderíamos ter um “Dia do Índio” de fato indígena?


Ainda no campo do empirismo, notamos que, para os colegas professores de história, o principal evento mobilizado para "cumprir a lei" é a Guerra ou a Confederação dos Tamoios, um confronto entre os povos tupinambás (também chamados de tamoios) habitantes do litoral fluminense e paulista, que se aliaram ao franceses para lutar contra temiminós, tupiniquins e portugueses. Daí, nossa decisão de pensar a Confederação - e, em particular, a Batalha de Uruçumirim -, pela perspectiva dos povos indígenas envolvidos.


Visitada pela arte e pela historiografia desde o século XIX, a Confederação dos Tamoios já foi considerada caso exemplar de um ideal nativista, que supostamente teria impulsionado os indígenas a enfrentar e tentar expulsar os invasores portugueses; ou como mera consequência de uma contenda entre portugueses e franceses pela posse do território americano, já que os tamoios teriam se organizado contra os portugueses “apenas” por serem aliados dos franceses, atuando como seus auxiliares na fundação da França Antártica. Hoje, contudo, nenhuma das ideias se sustenta: nem é possível afirmar a existência de um sentimento nativista entre os tupinambás, nem tampouco a Confederação parece ser consequência da presença francesa na Guanabara, sendo mais bem compreendida como uma articulação que incorporou os franceses, sem se submeter a eles (ALENCAR, 2017). Logo, a melhor forma de compreender o evento seria pôr em perspectiva as possibilidades de agenciamento dos povos indígenas em um contexto em que precisavam lidar com os interesses de outros povos, fossem também indígenas ou europeus. Menos que “proteger” a terra contra os portugueses ou entregá-la aos franceses, os tupinambás estavam buscando a melhor forma de sobreviver, mobilizando estratégias arraigadas em sua cultura: as guerras e as alianças.


Do mesmo modo, deve ser encarada a experiência de Uruçumirim, comumente lembrada por conta da batalha batizada com seu nome, ocorrida em 20 de janeiro de 1567, onde hoje está o outeiro da Glória. Apesar de ser um evento relevante da história da fundação do Rio de Janeiro, por ter posto fim à experiência da França Antártica e permitido aos portugueses dominar a região da Guanabara, cabe mencionar que Uruçumirim pertence antes à história tupinambá como parte das ações empreendidas pelos “confederados”.


Segundo Rafael Freitas da Silva (2017, p. 117), a nomenclatura Uruçumirim se referia a um dos líderes tupinambás da região, o morubixaba da aldeia de Eirámirim, a “taba da abelha pequena” - provavelmente, são grafias diferentes para o mesmo nome, partilhado entre a aldeia e seu líder. O local da batalha, contudo, não coincide com o da aldeia, que ficava mais próxima da enseada de Inhaúma. No contexto da Confederação, o morubixaba teria construído uma “paliçada” com vistas a proteger a aldeia Karióka contra as ofensivas de portugueses, temiminós e tupiniquins. Como os franceses foram aceitos como aliados, também se abrigavam em Uruçumirim depois que o Forte Coligny, seu principal reduto na Guanabara, tinha sido atacado anos antes. Vale enfatizar que Uruçumirim não estava só nesta empreitada, atuando ao lado de Cunhambebe, considerado o principal líder da Confederação, de Aimberê, Caoquira e Pindobossú.


E, do outro lado da “paliçada”, estava Arariboia, líder dos temiminós, lutando junto com os portugueses e os tupiniquins aldeados pelos jesuítas, vindos do que hoje é o estado do Espírito Santo. Arariboia é um personagem que já foi percebido pela história como herói ou traidor, a depender do ponto de vista. Em textos em que a empresa colonial portuguesa é louvada, junto com a expulsão dos franceses e a dizimação dos tupinambás, a atuação de Araribóia é encarada como crucial. Por sua vez, em trabalhos em que a Confederação dos Tamoios é reverenciada, Araribóia é compreendido como aliado dos inimigos, uma liderança que, ao invés de proteger, “entregou” a terra aos invasores.


Assim como no caso da historiografia e da memória dedicadas à Confederação, aqui também cabe uma contemporização, de modo a compreender quais coordenadas estavam em jogo. Afinal, caso a proposta da Confederação fosse, de fato, proteger a terra contra os “invasores”, o mais lógico seria que tupinambás, temiminós e tupiniquins se unissem para lutar contra franceses e portugueses. Por que um povo europeu seria mais aceitável como aliado do que outro? Haveria de fato diferenças no modo de tratamento dispensado por portugueses e franceses aos tupinambás e aos temiminós ou a compreensão desses eventos exigiria uma leitura mais complexa?


Em diálogo com Maria Regina Celestino de Almeida,

ao invés de franceses e tamoios de um lado e portugueses e temiminós de outro, percebemos uma complicada rede de interações na qual circulavam os diferentes subgrupos tupis, em um vaivém de acordos e disputas entre si e com os europeus. Mudavam de lado frequentemente, conforme as circunstâncias e seus interesses, que se modificavam com as experiências do contato. (ALMEIDA, 2017, p. 22)

A própria existência dos temiminós parece fazer parte dessa dinâmica: a denominação teria sido criada por portugueses para se referir a um grupo de tupinambás que, por alguma contenda, teria se separado de sua aldeia e se colocado na ofensiva, acabando por se associar aos portugueses sob a liderança de Arariboia (ALENCAR, 2017; SILVA, 2022).


Ainda em referência ao trabalho de Maria Regina Celestino de Almeida,

[s]ob essa perspectiva, ao invés de heróis portugueses derrotando índios selvagens com o apoio de índios fiéis e submissos que teriam se convertido completamente aos valores socioculturais portugueses, deparamos com grupos étnicos e sociais distintos que lutavam e negociavam, cada qual procurando fazer valer seus interesses. Os índios, por sua vez, deixam de ser vistos como tolos e manipulados, pois suas ações passam a ser entendidas como fruto de escolhas próprias condizentes com as lógicas de suas sociedades e com as possibilidades disponíveis. Escolhas limitadas, sem dúvida, pois as relações eram assimétricas e ocorriam em meio a um cenário caótico de extrema violência. (ALMEIDA, 2017, p.23)

Vale lembrar, porém, que a mudança de perspectiva não deve ficar circunscrita à sala de aula, já que a aprendizagem pode se dar por muitos caminhos. Iniciativas diversas vêm procurando restaurar a presença indígena no estado e na cidade do Rio de Janeiro, seja por ações políticas de demarcação de terras (PARQUE…, 2023), seja através da afirmação da memória, como os dois projetos comentados a seguir. O primeiro, “Caminho Ancestral Território UruçuMirim", com curadoria da museóloga Mariana Varzea, criadora do site Ó Glória! (www.ogloria.art.br), é uma galeria a céu aberto na Ladeira da Glória que procura inserir, em um território extremamente marcado pela memória da colonização portuguesa, obras que remetem à cultura indígena e afro-brasileira. O segundo, o Circuito Rio Indígena, idealizado pela historiadora e guia Patrícia Grigório (@bichocarpinteiroviagens), percorre os bairros da Glória, Lapa e Centro, destacando monumentos e instituições que, apesar de estarem ligados a história indígena, não fazem nenhuma referência a esses povos.


Circuito Rio de Janeiro Indígena da @bichocarpinteiroviagens,, durante visita ao Caminho Ancestral Território UruçuMirim, no Outeiro da Glória. Acervo pessoal da historiadora e guia Patrícia Grigório.


A partir deste pequeno exercício de repensar a Confederação do Tamoios e a Batalha de Uruçumirim em termos mais complexos, gostaríamos de indicar que a perspectiva de uma história decolonial inaugura a possibilidade de um outro olhar, menos instrumentalizado, para a história e cultura indígena. Abordar a história do Rio pela perspectiva dos povos indígenas envolve escrutinar registros nem sempre seguros sobre vivências atravessadas por lutas e resistências, saberes e práticas que se encontram muito além da dicotomia.


Referências Bibliográficas


ALENCAR, Agnes. A silenciosa construção de uma guerra: uma França Antártica indígena. Revista do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro. n.12, 2017.


ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. A atuação dos indígenas na História do Brasil: revisões historiográficas. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 37, nº 75, 2017.


PARQUE Estadual Cunhambebe: povos indígenas de Mangaratiba lutam por cogestão e pela demarcação de seu território. Mapa de Conflitos. Disponível em: https://mapadeconflitos.ensp.fiocruz.br/conflito/parque-estadual-cunhambebe-povos-indigenas-de-mangaratiba-lutam-por-cogestao-e-pela-demarcacao-de-seu-territorio/. Acesso em: 18 abr. 2023.


SILVA, Rafael Freitas da. O Rio antes do Rio. Rio de Janeiro: Babilônia Cultura Editorial, 2017.


______. Arariboia, o indígena que mudou a história do Brasil: uma biografia. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2022.


*Carlos Eduardo Pinto de Pinto é historiador e professor de História (UERJ).

** Daiana Crús Chagas é historiadora e professora de História (Fiocruz/Seeduc-RJ).


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