São Paulo, 01 de agosto de 2022.
Luzimar Soares*
O ano de 2022 está repleto de notícias escabrosas nos jornais. A falta de entendimento do direito e do espaço do outro parece cada dia mais comum. E a intolerância e o desrespeito têm alcançado níveis alarmantes. Esse mês de julho trouxe, a reboque, muitos casos de intolerância, ódio, crimes, e mostrou que as proximidades do pleito eleitoral podem ser de muita violência.
Crédito: Wix.
O curso de medicina é o que tem a maior duração. Para ser um médico generalista, ou seja, um clínico geral, uma pessoa precisa estudar por seis anos. Todavia, havendo a intenção de se tornar especialista em qualquer área da saúde, precisa estudar mais alguns anos. Então, o que leva um homem a estudar por tanto tempo para assumir um cargo em um hospital e estuprar mulheres desacordadas?
O abominável episódio de uma mulher em trabalho de parto, desacordada, deitada numa maca de hospital, enquanto seu corpo é cortado por médicos para a retirada de seu filho do ventre, em um momento que é celebrado, festejado, esperado e com hora marcada (de maneira geral, as cirurgias cesarianas são em datas acordadas entre médicos e pacientes), nesse momento, um ser abjeto e ignóbil usa para estuprar essa mulher. Como classificar esse ser? Como compreender a capacidade de um ser que, inegavelmente, tem um tipo de inteligência para cometer um ato tão desprezível.
Inquestionavelmente, foi um crime, e fica muito pior, pois não foi só um. O que levou a equipe que trabalhava com ele a desconfiar foi, justamente, seu comportamento pretérito. Existe uma hierarquia nas relações de trabalho, em qualquer profissão, setor ou ramo de atividade. Nem sempre é fácil encarar, questionar, denunciar alguém que é hierarquicamente superior. Incontáveis são os casos de denúncias que, além de não surtirem efeitos contra o denunciado, levam o denunciante ao desemprego. Por isso, as pessoas que ficaram alertas aos movimentos corporais do médico, resolveram filmá-lo.
Outro episódio triste, lamentável e fatal foi o assassinato de um homem que comemorava seu aniversário, por um adversário político. Esse lamentável caso difere do resultado do anterior, afinal, as vítimas tiveram destinos diferentes, todavia, são absurdamente cruéis e violentos. A mulher em situação de total vulnerabilidade estuprada sem a menor possiblidade de reação, e o homem em um momento festivo com sua família e amigos sendo atacado por outro armado e, claramente, com a intenção de matá-lo.
O que une esses dois seres que praticaram esses atos? Um no Rio de Janeiro, o outro no Paraná. Um era médico; o outro, agente federal. Um fez por puro prazer sexual; o outro, por desejo de política. Um fez com o próprio corpo; o outro, com uma arma. Eles invadiram os corpos de suas vítimas e satisfizeram seus desejos que, naqueles momentos, não controlaram. A racionalidade foi levada para um espaço onde acreditam ter o direito de decidir a vida de outrem?
Somos egoístas a tal ponto de não nos entendermos enquanto simplesmente humanos e, por conseguinte, sem o menor direito de decidirmos a vida das outras pessoas? Vivemos tempos difíceis, cruéis e desumanos. Quando leio sobre comportamentos humanos ao longo da História, e vejo o poder que alguns acreditaram ter com relação a outros, sempre me assusta como o ser humano é egoísta. Desde Freud (que desenvolveu a teoria do Id, ego e superego) aos nossos dias, estudiosos, sejam eles psicanalistas, psicólogos, historiadores, antropólogos, filósofos, dentre outros, buscam compreender o comportamento humano, suas falhas, suas virtudes, seus desejos e suas mentes.
Nesse caminhar de busca em entender o comportamento das pessoas, algumas coisas, acredito, precisam ser levadas em consideração. Somos seres sociais e, enquanto exercendo nossa cidadania, seguimos determinadas linhas de pensamento. Criar uma criticidade em cima daquilo que nos é passado não é uma tarefa das mais simples. Todos os dias somos invadidos por notícias, verdadeiras ou não, somos inundados de informações. Quando essas informações corroboram aquilo que já pensamos, ou quando legitimam nossos pensamentos, acabam por nos legitimar, também, nas ações.
O ano corrente está complexo na sociedade brasileira. No decorrer dos últimos 04 anos, mais ou menos, estamos assistindo ao crescimento de um tipo de comportamento que valoriza o uso da força para inibir o pensamento e o comportamento do outro. Diminuímos o número de bibliotecas, aumentamos o número de lojas que comercializam armas. Os clubes de tiros estão em pleno vapor. Os cursos de pós-graduação estão sendo fechados, e os incentivos financeiros para a educação têm caído vertiginosamente. Na contramão disso, incentivos fiscais e morais têm sido dados a quem usa, compra, vende e divulga as vantagens de se ter uma arma de fogo em casa.
Como preservar a vida, a liberdade de pensamento de ação, o direito de se construir enquanto ser único que somos, se a violência é incentivada nos pormenores das propagandas? Já vivemos tempos de propagandas de consumo de bebidas e cigarros como sendo algo que traria benesses. Nos últimos tempos, esses comerciais sofreram modificações e trazem alertas sobre os riscos à saúde de quem consome esses itens.
Mas, em contrapartida, o homem que exerce o poder máximo do país (naquilo que se refere ao poder executivo, “política”) usa suas redes sociais e locais de palanque para propagandear o uso de armas de fogo, celebra o crescimento das vendas, incentiva a criação de clube de tiro e, deliberadamente, estimula a violência. Usa quaisquer instrumentos que lhes são colocados nas mãos para simular uma arma: de tripé de microfone, passando por instrumento musical, até mãos de crianças ele usa para parecer uma arma.
Esse comportamento tem, sim, influência sobre a sociedade. Para aqueles que acreditam em seu líder, para os que sempre quiseram usar da força para impor seus desejos, o líder da nação lhes confere legitimidade. Se ele, o cara que está lá no poder, pode, eu aqui que sempre acreditei ter direito a uma arma e a usá-la quando quiser, também posso.
O desejo nos move para o bem ou para o mal, mesmo deixando de lado o maniqueísmo, a dualidade ou a dicotomia entre essas duas palavras, muitas vezes nossos desejos precisam apenas de um avalista. Temos, hoje, a representação da barbárie alojada em Brasília. O ego de cada um sendo endossado. Ego todos temos, como nos comportamos é o que nos separa entre a civilização e a selvageria.
Referências:
Anestesista flagrado em estupro de mulher durante o parto vira réu. Disponível em: https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2022/07/15/anestesista-flagrado-em-estupro-de-mulher-durante-o-parto-vira-reu.ghtml. Acesso em 25 de jul. de 2022.
Bolsonarista invade festa de aniversário e mata petista no Paraná. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/colunas/chico-alves/2022/07/10/bolsonarista-invade-festa-de-aniversario-mata-petista-e-tambem-e-morto.htm?cmpid=copiaecola. Acesso em 25 de jul. de 2022
*Luzimar Soares é historiadora (PUC-SP/USP).
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