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Foto do escritorLuzimar Soares

Recordações da infância, fim de ano e memórias afetivas.

Atualizado: 2 de jan. de 2023

Guarulhos, 01 de janeiro de 2023.

Luzimar Soares*


Comumente, dezembro é mês de retrospectiva, de balanços, de verificação de metas, de checagem dos planos para se certificar daqueles que deram certo, e os que precisaram ser refeitos ao longo do ano, os que foram abandonados e os que tiveram de sofrer ajustes. É, também, momento de nostalgia, de rememorar tempos idos em busca de lugares de afeto, bem como de distanciamento de lugares de dor.



Crédito da Imagem: Torto Arado, Itamar Vieira Junior, 2019, Editora Todavia.

Acesso em: 31 dez. 2022.



Invariavelmente, os planos para o novo ano são cheios de desafios. Cada um, na sua particularidade, busca entender onde “falhou”, ou seja, porque não realizou determinado plano ou, talvez, porque foi necessário modificar o rumo de um traçado, e porque foi imperativo compensar ou alterar a rota. Munido das próprias explicações, desculpas, justificativas e impulsionado pelo sentimento de renovação que parece inundar a todos, um novo capítulo começa a ser escrito.


Neste final de dezembro de 2022, muitos são os sentimentos que me invadem. A renovação na política nacional, as incertezas com relação ao fim ou à continuidade da Covid – 19, ou seja, teremos que conviver com a enfermidade com naturalidade? Teremos que nos vacinar todo ano? As adesões às vacinas voltarão a ter as marcas que já tivemos? Enterraremos os negacionismos nefastos e ficaremos apenas com os questionamentos para fazer a ciência caminhar?


Em meio a esse vendaval de questionamentos que me assolam, semestre acadêmico encerrado, a vida menos tumultuada, abri um livro diferente para ler. Livro esse que ganhei da minha parceira de trabalho e amiga confidente, Luciene Carris, que, quando o leu, disse que lembrou de mim na hora. É bem verdade que já tem um tempo que ganhei o presente, mas não havia conseguido parar para ler. Verdade também que ainda não terminei o livro, mas, já nas primeiras páginas, me reconheci e me reconectei com minhas lembranças de infância.


A publicação intitulada Torto Arado, de Itamar Vieira Junior, não é só uma obra incrível. Para mim, é a história de muitos nordestinos que, como eu, viveu a escassez de água, de alimentos, a inexistência de escolas, o trabalho árduo nos campos tórridos; o desespero do sol escaldante sem nenhum vislumbre de uma gota d´água cair do céu para umedecer o solo, correr pelos rios, trazer peixes para alimentar as pessoas, fazer crescer as pastagens para alimentar os animais, saciar a fome das pessoas e, mais lá na frente, com a colheita e venda do “excedente”, proporcionar a aquisição de coisas tais como: roupas, calçados e outros bens que acabam ficando para segundo plano.


Quando éramos crianças, nos anos em que havia inverno (leia-se, chuvas de janeiro a abril), que proporcionam colheita a partir do mês de junho, dependendo da quantidade de chuvas, mesas fartas viram rotina, e as festividades de São João e São Pedro (24 e 29 de junho, respectivamente) traziam, para nós, obrigações de “vigias”. Nos meses pré colhimento dos grãos, postávamo-nos nos roçados munidos de estilingues (por nós chamadas de baladeiras naquele período), ou fundas[1], que utilizávamos para espantar os pássaros que insistiam em roubar nossas sementes.


Eis que essa memória foi despertada com muita clareza quando em Torto Arado:



Nos muníamos de galhos, pedras, tudo que fosse instrumento para espantar os pássaros, miudinhos, de penas negras e que brilhavam quase azuis na luz da manhã. Se não fôssemos rápidos o suficiente, seu bico entrava no grão que amadurecia e sugava tudo que estivesse dentro, som sua minúscula língua. Enquanto os adultos trabalhavam, cabia a nós, as crianças, espantar a praga. Os meninos chegavam com estilingues, por vezes abatiam a ave pequena (VIEIRA JUNIOR, 2019, p. 42).


Essa leitura, levou-me para um espaço de memória que nem sempre é fácil de visitar, mas gosto de ir nesse lugar de história familiar para compreender alguns sentimentos que tenho hoje. Quando éramos crianças, lá no meio do sertão do Ceará, as festividades de fim de ano não existiam. Possivelmente por isso, não criei memória afetiva de pertencimento a estes eventos, fato este que me deixa bastante confortável para trabalhar em 25 de dezembro ou em 31 de dezembro sem sofrimento.


Presencio muitas pessoas ressentidas por trabalharem nessas datas, especialmente aquelas que tem filhos. São pessoas que estão criando com os seus as memórias que serão revisitadas, então é perfeitamente compreensível a vontade de estar perto para edificar lembranças com os seus. Revisitar as reminiscências das nossas infâncias são importantes para sabermos por que somos o que somos hoje. Muitos estudiosos se debruçam sobre esses lugares de memórias para compreenderem os comportamentos dos adultos.


Fim de ano, para mim, representa sempre o lugar de recomeços, de fechar ciclos, de pensar quais os cursos que farei no ano seguinte. Tem sido assim: recomeçar estudos, agradecer as parcerias, as amizades. O ano de 2022 foi um fechamento de ciclo muito importante para mim particularmente, mas foi memorável para esse blog. Conseguimos alcançar um selo oferecido pela Anpuh (Associação dos Professores Universitário de História), o Saberes Históricos, selo esse que é um reconhecimento do nosso trabalho.


Somos hoje um quarteto: além de mim, Luciene Carris, André Sena e o recentemente chegado Carlos Eduardo Pinto de Pinto. Por aqui, trazemos, além de memórias afetivas, outros estudiosos que, gentilmente, dividem seus conhecimentos através das nossas páginas. Portanto, esse texto é uma revisita à minha infância, mas também um agradecimento aos parceiros amigos (as) e a todos (as) que escreveram até aqui. E, também, a cada leitor.

Desejo verdadeiramente que consigamos criar, ou evocar, memórias em nossos leitores e, também, despertar curiosidade o suficiente para provocar a vontade de pesquisar sobre os assuntos que escrevemos.


Um feliz 2023.

Obrigada.


Referências:

Fórum Saberes Históricos. Disponível em: https://www.forumsabereshistoricos.com/selo-saberes-historicos. Acesso em: 20 dez. 22.

O que é uma funda? Disponível em: https://estudododia.com.br/curiosidades/o-que-e-uma-funda-ou-fundibulo/. Acesso em: 29 dez. 22.

VIEIRA JUNIOR, Itamar. Torto Arado. São Paulo: Todavia, 2019.


[1] Uma funda, ou fundíbulo, é uma arma de arremesso constituída por uma correia ou corda dobrada, em cujo centro é colocado o objeto que se deseja lançar. Também chamada de atiradeira, catapulta ou estilingue, embora alguns desses nomes possam remeter a tipos de armas de arremesso específicos. Uma das mais antigas e primitivas armas feitas pelo homem, seu uso é registrado entre os primitivos australianos, e diversos povos da Antiguidade, tais como gregos e hebreus. Neste último povo é célebre a passagem contida no Antigo Testamento em que David derrota o gigante Golias, utilizando-se de uma funda. Disponível em: https://estudododia.com.br/curiosidades/o-que-e-uma-funda-ou-fundibulo/ Acesso em 29 dez. 2022.


*Luzimar Soares é historidora (PUC-SP/USP).

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