Rio de Janeiro, 01 de outubro de 2022.
Luciene Carris*
Não é demais recordar que a maior parte da população brasileira ainda é má representada. Como constado pelo Instituto Brasileiro e Geografia e Estatística, cerca de 213 milhões de pessoas se distribuem no território nacional. Estima-se que 52% da nossa população seja feminina e negra. Mas falta uma justa representatividade na política. É vital que mulheres, negros, indígenas e LGBTQIA+ sejam representados, pois, assim, poderemos diminuir a desigualdade socioeconômica, dentre outros males como a violência sistêmica na nossa sociedade.
Crédito: Wix.
Até parece que foi ontem quando acompanhava nos jornais o movimento pelas Diretas Já. Alguns anos depois, discutia-se intensamente a necessidade de uma nova Carta Constitucional, afinal um triste período pautado num regime de exceção, que durou por 21 anos no nosso país, se encerrava. Ainda não era bem uma adulta, pelo contrário. Mas aquelas cenas na velha televisão de tubo ainda pairam vez por outra entre as minhas recordações. Aliás, essa dialética lembrança e esquecimento é extremamente interessante, pois se mistura com sentimentos até ambíguos, e ao passo em que se confundem e se mesclam com a minha trajetória como historiadora.
Naquela época, as notícias disseminadas eram veiculadas através dos jornais impressos ou pelos canais de televisão, bem diferente do contexto atual, quando observamos as mídias digitais e os grupos de aplicativos de mensagens instantâneas. Pairam nas minhas lembranças, imagens de homens brancos vestidos com seus ternos bem cortados de tom cinza ou preto, tão eloquentes e entusiastas de uma nova era, pelos menos, aparentemente. Porém. havia um certo distanciamento do universo do político e o mundo no qual eu me inseria, a “política” não se discutia. O consenso era que de se tratava da mais pura “demagogia”. As promessas eram vazias de sentido para o povo, discutia-se que o objetivo principal era alcançar o poder político ou outras vantagens correlacionadas. O mundo da política era branco, masculino e patriarcal.
Assembleia Nacional Constiuinte (1988).
Crédito: Site da Câmara dos Deputados.
De lá para cá, não mudou muito. As mulheres ocupam 16% dos cargos políticos, são 13 senadoras no total de 81 e 77 deputadas no total de 513. Além disso, a redação da nova Carta contou com a articulação de inúmeros grupos como o chamado “lobby do batom” composto por 26 mulheres, que atuaram ativamente na Assembleia Nacional Constituinte de 1987. Mas, de fato, correspondiam a menos do que 5% dos 559 parlamentares eleitos. Aliás, no plenário não havia sequer um banheiro feminino. Como se constata, a participação feminina na política não havia sido de fato incorporada ou sequer aceita, era inexpressiva sem dúvida, a Constituição de 1988 foi um importante acontecimento na transição democrática brasileira, constitui um marco político-jurídico da transição democrática e da institucionalização dos direitos humanos no país. Seja como for, a nova Carta incorporou muitas das reivindicações do grupo, como “o princípio da igualdade jurídica entre os gêneros, a ampliação dos direitos civis, sociais e econômicos das mulheres, a igualdade de direitos e responsabilidades na família, a definição do princípio da não-discriminação por sexo e raça-etnia, a proibição da discriminação da mulher no mercado de trabalho e o estabelecimento de direitos no campo da anticoncepção” (SILVA, p. 229, 2011).
Manifestação de mulheres que apresentaram
a Carta das Mulheres Brasileiras aos Constituintes.
Crédito da imagem: Site da Câmara dos Deputados.
E assim, pela primeira vez na História do Brasil, as eleições de 2022 terão o maior número de candidatos negros e de mulheres, além do crescimento de candidaturas de indígenas e LGBTQIA+. Provavelmente, em um futuro próximo, novas políticas públicas inclusivas serão criadas, mas isto não significa que será sem luta ou sem alguma discórdia. O ano ainda não terminou, atravessamos um período conturbado com a eleição da extrema direita na Itália e com uma guerra que envolve a Rússia e a Ucrânia, que não tem previsão de se encerrar, isto tudo depois de uma grave pandemia de coronavírus que ceifou a vida de milhões de pessoas ao redor do mundo. Vale a pena relembrar que só no Brasil cerca de 700 mil cidadãos vieram à óbito, sem falar naqueles que adquiriram sequelas.
Desde a redemocratização, a eleição de 2022 é considerada, por muitos estudiosos, como a mais polarizada, e ao que tudo indica o antagonismo não se encerrará no dia 02 de outubro. Não temos uma bola de cristal para descobrir o que virá. O presentismo não pode explicar a história. Contudo, o ódio, o medo e a intolerância foram catalisadores de fases conturbadas na história do século XX, entre guerras e genocídios. Em um cenário de tantas tensões é bom evitar que a história se repita como farsa ou tragédia. Daí a importância de falarmos e discutimos abertamente sobre tais episódios nas redes e em todos os espaços disponíveis como este. Não por acaso, recupero a fala do premiado escritor moçambicano Mia Couto realizada na Conferência de Estoril de 2011:
Os que trabalham têm medo de perder o trabalho; os que não trabalham têm medo de nunca encontrar trabalho; quando não têm medo da fome, tem medo da comida; os civis têm medo dos militares; os militares têm medo da falta de armas e as armas têm medo da falta de guerras e, se calhar, acrescento agora eu, há quem tenha medo de que o medo acabe. (Mia Couto, 2011).
Referências:
CÂMARA DOS DEPUTADOS. 30 anos da Constituição da Cidadania. Disponível em: https://www.camara.leg.br/internet/agencia/infograficos-html5/constituinte/index.html Acesso em: 28 set. 2022.
COUTO, Mia. Há quem tem medo de que o medo acabe. Conferência de Estoril, 2011. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=5xtgUxggt_4 Acesso em: 29 set. 2022.
Palavra de mulher (Documentário, 2018). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=9vknN09wuTw Acesso em: 30 set. 2022.
SILVA, Salete Maria da. A carta que elas escreveram: a participação das mulheres no processo de elaboração da Constituição Federal de 1988. Tese (Doutorado), Programa de Pós-Graduação em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismo da Universidade Federal da Bahia, 2011. Disponível em: https://repositorio.ufba.br/handle/ri/7298 Acesso em 20 set. 2022.
Luciene Carris é historiadora (UERJ).
Commenti