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Os ataques à intelectualidade e a necessidade de construir conhecimento

Guarulhos, 15 de novembro de 2021.

Luzimar Soares*


Nos primeiros anos desse milênio, aqui no Brasil, aconteceu um fenômeno que ainda está deixando parte da sociedade, senão incomodada, no mínimo, desacreditada. O ingresso de muitos jovens periféricos nas universidades públicas tem mudado o quadro nas salas de aula, especialmente pela chegada de uma diversidade muito grande pessoas. Obviamente, não há ainda vagas para todos, mas muitas pessoas pretas passaram a frequentar as salas de aula, e isso tem mudado, inclusive, a forma de pensar a sociedade.



Lélia Gonzalez, 1968.

Crédito: CEERT.ORG.


É bem verdade que temos exemplos como o de Machado de Assis e Luís Gonzaga Pinto da Gama, o Luís Gama. Mas hoje, temos um número bem mais expressivo nas universidades pensando e criando, desafiando o que está posto e recontando a História, inclusive a História da África, com seus próprios olhares. Esses intelectuais que, por muito tempo, sequer tiveram a oportunidade de frequentar uma escola de qualidade, hoje, estão escrevendo, pensando a sociedade, debatendo, questionando e se posicionando.

Essa presença desconcerta e incomoda. Não raro, as colocações de quem não aceita a presença dessa intelectualidade fazem afirmações do tipo: “os maconheiros de tal Universidade”; “aqueles que se dizem estudantes”; “na Universidade agora entra qualquer um”; “um absurdo essas bolsas”; “meu filho não entrou na Universidade por causa desses programas que privilegiam os pobres”; dentre outros despautérios com o intuito de diminuir a capacidade da população que tem menor poder aquisitivo.

Acredito que podemos falar de uma questão de poder, ou seja, quando a hegemonia se percebe perdendo terreno, ataca. Quando não consegue barrar a presença do outro, tenta esconder ou apagar, soterrando os pensadores e colocando outros nomes em seus lugares. A verdade é que, apesar de a obrigatoriedade do ensino sobre a África e sobre os povos originários do Brasil ser muito recente, já está fazendo a diferença na sociedade brasileira. Cada dia mais, as universidades estão com seus corredores, rampas, escadarias e salas de aula diversificadas. A edificação do saber está mais heterogênea.

A construção do conhecimento passa por mentes pensantes. Esses pensadores são chamados de intelectuais, todavia, a alcunha de intelectual pode ser dada para todo aquele profissional que não “trabalha com as mãos”, ou seja, pesquisadores, professores, médicos, pensadores de maneira geral são reconhecidos como intelectuais.

Convencionou-se chamar de intelectuais somente aqueles que ocupam papéis de destaque na sociedade. No entanto, de acordo com Joel Rufino dos Santos, “qualquer profissional liberal é um intelectual”. Porém, é necessário compreender que, se aprofundarmos um pouco mais a pesquisa, descobriremos que o intelectual é aquele que trabalha e vive de produzir conhecimento.

Em uma sociedade desigual, inclusive na intelectualidade, há o apagamento daqueles que não seguem a lógica dominante. Hoje, muitos pesquisadores buscam o reconhecimento de intelectuais que foram apagados, bem como histórias soterradas por um pensamento eurocêntrico. Podemos citar as mulheres e os negros, bem como a História da África e dos povos originários do Brasil. Quando falamos das mulheres intelectuais, poucas foram reconhecidas e, se foram, tiveram papéis bem menos relevantes que seus parceiros de profissão. Da mesma forma, a História nacional foi sempre contada de forma a exaltar o papel do branco europeu, e relegando aos negros africanos e aos povos autóctones a pecha de povo inculto e incapaz, além de outros adjetivos pouco lisonjeiros.

Os trabalhos de intelectuais como Conceição Evaristo e Lélia Gonzales, por exemplo, foram deixados escondidos por uma intelectualidade branca e masculina. Quando Angela Davis (também intelectual e negra) veio ao Brasil em 2019, em seu discurso, ela disse não compreender as pessoas a exaltarem tanto, se aqui temos Lélia Gonzales. Ou seja, ainda que reconheçamos a intelectualidade negra e feminina, é de mulheres de outros países, de lugares reconhecidos como Primeiro Mundo. A luta é para desconstruir esse imaginário e trazer à baila a intelectualidade feminina, negra e indígena, além de reconhecer as ancestralidades da nossa sociedade.

Muitos intelectuais são convocados para pensarem estratégias políticas e planos de governos de maneira a convencer a população de que os governantes estão fazendo de tudo para que suas vidas fiquem melhor. Possivelmente, o maior exemplo dessa intelectualidade utilizada por governos totalitários possa ser vista na Alemanha nazista, quando pensadores como Martin Heidegger, que fez parte do partido de Adolph Hitler, produziu conhecimento em favor do regime. Por esta razão, rompeu com Hannah Arendt, relação que ficou abalada até 1950.

Considerada como uma das grandes intelectuais do século XX, Hannah Arendt criou o conceito de banalização do mal. Ela trabalhou incansavelmente para combater o nazismo, foi perseguida, presa, fugiu e, por fim, estabeleceu-se nos EUA, onde pesquisou e lecionou até o fim de sua vida. Hannah, assim como seus contemporâneos, tais como Walter Benjamin, produziram conhecimento para falar sobre o perigo dos regimes totalitários, bem como criticaram as proximidades de muitos intelectuais daquela época com o nazismo.

Ao fim e ao cabo, o intelectual é o pensador, o construtor de conhecimento. Ele pode tanto ser apagado e negado, quanto ser exaltado e seguido. A intelectualidade passa, hoje, por um momento de reconhecimento de sujeitos e, especialmente na História, busca recontá-la considerando todos os sujeitos históricos, não mais os grandes homens apenas.

Certamente, a disputa de espaço passa por lutas de narrativas. Cabe aos que conseguiram, ainda que a duras penas, subir alguns degraus - ou talvez só um - nessa escada de conhecimento, não permitirem retroceder. A disputa de território de conhecimento está colocada o tempo todo. É preciso resistir para existir. Que resistamos os periféricos, os negros, os povos originários, as mulheres e todos aqueles que foram excluídos por não serem hegemônicos! As Universidades são nossas. Que possamos ocupá-las cada dia mais.


Luzimar Soares é historiadora (PUC-SP).


Referências:

ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. 1. ed. - São Paulo: Boitempo, 2016.

EVARISTO, Conceição. Becos da memória. Belo Horizonte: Mazza, 2006.

GONZALEZ, Lélia. Retratos do Brasil Negro. São Paulo: Selo Negro, 2010.


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