Guarulhos, 15 de janeiro de 2023.
Luzimar Soares*
Nunca é demais afirmar: o poder é branco, masculino e adulto. Em outras palavras, subordinam-se ao macho e adulto mulheres, negros e não-adultos.
Heleieth I.B. Saffioti.
No meu último texto aqui, falei sobre as formas como, em dezembro, nos despedimos do ano e criamos expectativas para o futuro que nascerá junto com o primeiro de janeiro. De maneira geral, 1º de janeiro é o dia em que, basicamente, todos os serviços param. As pessoas não gostam de trabalhar nesse feriado, e, quem por força da profissão é obrigado a trabalhar, muitas vezes, se sente triste e solitário.
De qualquer forma, para quem trabalha com turismo e prestação de serviços, muitas vezes, não é possível, ainda que se tente, não trabalhar, afinal, esse setor é justamente aquele que garante que os demais possam festejar e começar o ano em grande estilo e com diversão. Sendo assim, existe um contingente enorme de pessoas que trabalham no feriado de 1º de janeiro.
Crédito da imagem: Wix.
O ano de 2023 começou em um domingo o que, para aqueles que esperam por feriado para descansar um pouco, traz uma certa frustração. Feriado de domingo acaba sendo somente mais um domingo, todavia, esse ano de 2023 tem uma conotação diferente para os brasileiros. Independente de ideologia e alinhamento político, nesse ano, teve início o terceiro governo de Luiz Inácio Lula da Silva, o único até hoje a subir a rampa pela terceira vez. O único oriundo, literalmente, da classe trabalhadora.
Considerando a unicidade desse personagem, ele fez uma posse, ou melhor, uma subida de rampa de uma forma jamais feita ou, sequer, cogitada. Num mundo de elites, pessoas comuns subiram a rampa com o presidente, e, levaram consigo uma cadela, representando a palavra que se tornou o sustentáculo das minorias. Resistência, esse é o nome da cadela e a forma que os “outsiders” viveram os últimos anos.
Não é novidade que nosso país sempre foi desigual e cruel com as minorias. Tão cruel e pesado que as próprias minorias, muitas vezes, preferem se aliar aos seus algozes a lutar com seus iguais. A luta é pesada, densa, desigual, impiedosa, bárbara e, muitas vezes, sangrenta. Portanto, unir-se aos facínoras pode ser uma forma teoricamente menos pesada de viver. Teoricamente, por quê? Porque essa união acaba por permitir a perpetuação da desigualdade em todos os níveis. Lutar é também mortífero, muitas mulheres, especialmente, morrem no campo de batalha. Aqui, refiro-me a batalha diuturna contra o machismo instalado, suportado pelo poder branco patriarcal e capital.
Seguindo na esteira dos acontecimentos do atual ano, no fim de semana posterior à posse aclamada por muitos, vivenciamos um domingo de atrocidades contra pessoas, mas, principalmente, contra a sociedade democrática de direito. Tivemos nossos bens quebrados, roubados, vilipendiados, destruídos, achincalhados, diminuídos a restos nos pisos dos prédios. Vivemos um dia de tentativa de golpe (mais um), arquitetado por pessoas que não aceitam perder.
Todavia, não é só o não aceitar perder, é bem mais. É um grupo (grande) de pessoas que se percebem donos do poder de tal maneira que não conseguem acatar a decisão da maioria e gritam aos berros que querem intervenção militar para tirar do poder alguém que foi empossado pelo mesmo sistema que, há quatro anos, empossou alguém que essas mesmas pessoas acreditam ser o melhor. Ora, somente quando é favorável a mim o sistema é confiável?
Na arena de disputa, os poderosos, de uma forma ou de outra, sempre contaram com as polícias a lhes garantir o direito de fazerem o que querem. É facílimo encontrar imagens da polícia do Distrito Federal escoltando, tirando selfies, saindo da frente, literalmente abrindo caminho para os “manifestantes” chegarem perto de seus objetivos. E, quando chegaram, os mesmos policiais se afastaram e foram tomar água de coco. A legislação, muitas vezes, não é bem vista pelos poderosos. A legislação pode obrigar a tomada de decisão que protegerá os menos favorecidos. E essa proteção pode ter que ser executada pelos policiais que preferem unir-se aos poderosos.
Em uma publicação sobre os efeitos do machismo na sociedade, a estudiosa Heleieth I. B. Saffioti (1987) disserta sobre como os privilegiados têm dificuldade de aceitar determinadas leis. Obviamente, aqui ela fala sobre as leis que versam pela proteção das minorias. Em suas palavras:
A legislação paira como uma ameaça contra brancos que descriminam negros, pois estes podem a ela recorrer, a fim de defender seus direitos de cidadãos. Pode-se, portanto afirmar que a situação de marginalização do negro seria ainda pior se não houvesse uma legislação específica, proibindo práticas discriminatórias contra ele. Como na prática brancos e negros não são iguais, faz-se necessário uma legislação que proeja os socialmente mais fracos, funcionando, pelo menos, como ameaça aos socialmente mais fortes.
Invariavelmente, na História do nosso país, todas as vezes em que o poder branco, masculino e adulto se sente ameaçado, esse poder se volta de forma violenta e atroz. Uma linha do tempo traçada para uma olhada sobre os episódios recentes nos mostra que golpes e mais golpes foram utilizados para garantir que esses mesmos poderosos mantivessem os seus privilégios, os seus lugares de mando e as suas dominações.
A violência que assistimos no dia 08 de janeiro, o segundo domingo do ano de 2023, foi, até onde mostram as notícias vinculadas pelos meios de comunicação, muito bem planejada. Utilizando de inverdades e da tecnologia, os hoje classificados como terroristas, angariaram fundos, reuniram pessoas com pensamentos parecidos, corroboraram sentimentos de pertencimentos. Para Madaleine Albright (2018), a tecnologia possibilitou o crescimento de regimes inescrupulosos.
Pior, a tecnologia possibilitou que organizações extremistas erguessem câmaras de eco em apoio a teorias de conspiração, falsas narrativas e visões ignorantes sobre religião e raça. Eis a regra número um da fraude: praticamente qualquer história, afirmação ou calúnia começa a soar plausível quando repetida frequentemente. [...] A meu ver, um fascista é alguém com profunda identificação com um determinado grupo ou nação em cujo nome se predispõe a falar, que não dá a mínima para os direitos dos outros e está disposto a usar os meios que fossem necessários – inclusive a violência – para atingir suas metas. A se julgar por esse prisma, um fascista provavelmente será um tirano, mas um tirano não necessariamente será um fascista.
Encerro esses escritos com um apelo àqueles que acreditam numa sociedade mais justa, mais inclusiva, mais humana: sejamos realmente uma sociedade democrática, aceitemos os resultados de processos democráticos, lutemos pelos meios legais, usemos as manifestações para reivindicar direitos inclusivos e não exclusivos. Diminuir a violência, especialmente com os grupos minoritários, perpassa obrigatoriamente por respeitarmos o direito do outro, ou seja, a democracia. Se assim não o for, não teremos como quebrar uma forma de violência estabelecida. O estudioso Lucas Veiga (2019), afirma:
O estabelecimento de um determinado modo de ser no mundo forja-se a partir da negação de outros modos de ser, que não pode se dar senão por um processo de violência. Vivemos numa sociedade constituída pela e da violência.
Que o 08 de janeiro não se repita.
Referências:
ALBRIGHT, Madeleine. Fascismo: um alerta. São Paulo: Planeta, 2018.
SAFFIOTI, Heleieth I.B. O poder do macho. São Paulo: Moderna, 1987.
VEIGA, Lucas. Além do preto gay: as diásporas da bixa preta. IN: RESTIER, Henrique e SOUZA, Rolf Malungo. Diários Contemporâneos sobre Homens Negros e Masculinidades. São Paulo: Ciclo Contínuo Edit
*Luzimar Soares é historiadora (PUC-SP/USP).
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