Guarulhos, 01 de agosto de 2023.
Luzimar Soares*
E é longa a lista dos lugares onde uma mulher “honesta” não poderia se mostrar sem se degradar.
Michelle Perrot. (2020).
No ultimo dia 20 de julho teve início mais uma competição de futebol mundial, dessa vez a Copa Mundial de Futebol Feminino. Mulheres disputando um campeonato mundial assim como homens, todavia, não existe bandeirolas nas ruas, asfalto pintado, tampouco pessoas se organizando para assistirem aos jogos juntos.
Crédito da imagem: WIX.
Falar sobre futebol não é um lugar confortável para mim e, justamente por não ser adepta e definitivamente não compreender as regras, prefiro ausentar-me nos momentos de reuniões futebolísticas, sejam elas para discutir ou para assistir as partidas. Mas, o meu intelecto ferve para falar sobre o feminino.
As sociedades de maneira geral, em maior ou menor grau, ainda relegam ás mulheres lugares pré-determinados por constituição genética, ou, pelo menos é o que alegam, no senso comum não é difícil de ouvir jargões tais como: isso não é coisas de mulher, mulher deveria cuidar dos filhos e da casa, mulher não foi feita para isso, etc. etc. e etc. Sendo assim, claro que o futebol não ficaria de fora desse lugar de pertencimento masculino. Aqui restringirei minhas análises sobre o futebol feminino brasileiro.
Quando se trata de Brasil, todo um imaginário foi construído para deixar a mulher no lugar que fosse confortável ao patriarcado e não a elas. É preciso salientar que esse quimérico foi edificado com o auxílio da lei, o que significa dizer que leis e decretos foram promulgados como forma de domar as mulheres e fazê-las ficarem em “seus lugares”. O DECRETO-LEI Nº 3.199, DE 14 DE ABRIL DE 1941, traz em seu texto:
Art. 54. Às mulheres não se permitirá a prática de desportos incompatíveis com as condições de sua natureza, devendo, para este efeito, o Conselho Nacional de Desportos baixar as necessárias instruções às entidades desportivas do país.
Pelo exposto acima, percebe-se que a mulher deveria seguir normativas e praticar esportes que fossem condizentes com seu corpo, isso, claro, seguindo o determinado por homens que pensaram esse decreto. Se avançamos no tempo, na década de 1960, o Conselho Nacional de Desportos, baixa Instruções com textos que explicitam esportes que as mulheres não podiam naquele momento praticar. Em matéria de 2021, o jornal o globo traz uma reportagem sobre os 80 anos do decreto.
Durante a Ditadura Militar, em 1965, o Conselho Nacional de Desportos (CND) citou nominalmente os esportes proibidos com "lutas de qualquer natureza, futebol, futebol de salão, futebol de praia, polo-aquático, rugby, halterofilismo e beisebol”. A regulamentação do futebol feminino aconteceu apenas em 1983, apesar de oficialmente o fim deste decreto ter sido em 1979. Com isso, foi permitido que se pudesse competir, criar calendários, utilizar estádios, ensinar nas escolas. Clubes como o Radar e Saad surgem como pioneiros no profissionalismo.
Desse modo, diferentemente do futebol masculino que não só foi incentivado, como também vendido, o futebol feminino foi proibido, e a construção social disso, permanece latente até os dias atuais. As jogadoras brasileiras ganham infinitamente menos do que os jogadores, têm menos patrocinadores, dentre tantas outras discrepâncias.
Mas voltemos ao cultural, ainda hoje é rara a presença feminina no futebol em todas as instâncias, do jornalismo aos bancos de reserva, passando pelas jogadoras em si e claro, treinadoras. Se olharmos os estádios de futebol, não vemos nenhuma mulher treinando um time profissional masculino, todavia, os times femininos ainda permanecem sendo treinados por homens. Apenas no ano de 2022, o campeonato brasileiro de futebol feminino chegou ao número de 1̸3 dos times treinados por mulheres.
Essa ausência feminina no futebol tem muitas implicações, obviamente que a remuneração é uma delas, a jogadora Marta da seleção brasileira de futebol feminino é a atleta que mais fez gol pelo Brasil nas copas do mundo de futebol, no entanto, continua sem grandes patrocinadores,(se comparado aos jogadores masculinos) inclusive, não usa chuteiras de marcas.
A jogadora que carrega o título de Rainha Marta, usa chuteiras de marca própria, em vários noticiários sobre o assunto, lê-se que ela se recusa desde 2019 a usar calçados de marcas, justamente por essas empresas pagarem muito mais para os jogadores do que para as jogadoras. Marta foi escolhida a melhor jogadora do mundo pela Fifa seis vezes, é a maior artilheira das Copas do Mundo, mas recebe menos do que os homens para usar um calçado de marca.
Estudos sobre os Decretos e Instruções acerca da prática de esportes, versam sobre a questão da construção cultural. As pesquisadoras Ludmila Mourão e Marcia Morel, em análises sobre os discursos da mídia com relação ao futebol feminino, afirmam:
Esse tema certamente merece uma pesquisa muito maior e mais apurada, no entanto, acho bastante pertinente que nos atentemos aos acontecimentos; o futebol feminino além de não ser incentivado, foi proibido no país por 40 anos, a imprensa não só apoiou como, utilizou seus espaços para diminuir o lugar da mulher no esporte. Esse lugar que não deveria ser ocupado pelo feminino, se olharmos de perto, é o espaço do público, ou seja, o corpo feminino pertence ao lar. Concerne ao homem decidir o que a mulher fará.
As dominações das minorias representativas, sempre se deram através de normativas relativas à mulheres, aos negros, aos pobres. “As classes perigosas”, precisam de domesticação. Incutir esse pensamento na sociedade é a forma mais fácil de controle. Pais proibirão suas filhas de praticarem esportes que não sejam de meninas e aquelas que ousaremm desobedecer serão punidas. Frequentemente ouve-se histórias de mulheres que em suas infâncias tiveram que se disfarçar de meninos para conseguirem jogar.
Ainda que eu não seja uma fã de futebol, adoraria ver as ruas coloridas, as mesas de bares reservadas, os amigos se reunindo, os asfaltos pintados, as bandeirolas flamulando nos carros, pessoas vestindo as camisas das seleções com os nomes das jogadoras e acima de tudo equidade salarial para as jogadoras.
Sempre que leio que o feminismo é desnecessário, tenho mais certeza de que além de indispensável, é também o único caminho para não sermos aprisionadas absolutamente todos os dias.
Referências:
FILHO, Lino Castellani. Esporte e Mulher em perspectiva. IN: Universidade do Futebol. Disponível em: https://universidadedofutebol.com.br/2012/03/08/esporte-e-mulher-em-perspectiva/. Acesso em: 27 jul. 23.
MOURÃO, Ludmila e MOREL, Marcia. AS NARRATIVAS SOBRE O FUTEBOL FEMININO, O DISCURSO DA MÍDIA IMPRESSA EM CAMPO. IN: Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 26, n. 2, p. 73-86, jan. 2005. Disponível em: http://oldarchive.rbceonline.org.br/index.php/RBCE/article/view/148/157. Acesso em 26 jul. 23.
PERROT, Michelle. Os excluídos da história: operários, mulheres e prisioneiros. Rio de Janeiro ̸ São Paulo: Paz e Terra, 2020.
ROCHA, Gilson. Entenda por que Marta, da Seleção Feminina, usa chuteira sem marca na Copa. IN: Meionorte.com. Disponível em: https://www.meionorte.com/esportes/entenda-por-que-marta-da-selecao-feminina-usa-chuteira-sem-marca-na-copa-477833. Acesso em: 28 jul. 23.
SÁ, Juliana. Decreto-lei que proibiu a prática do futebol feminino completa 80 anos. Disponível em: https://ge.globo.com/futebol/futebol-feminino/noticia/decreto-lei-de-proibicao-da-pratica-do-futebol-por-mulheres-completa-80-anos.ghtml. Acesso em: 28 jul. 23.
*Luzimar Soares é historiadora (PUC-SP/USP).
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