Rio de Janeiro, 24 de agosto de 2023.
Luciene Carris*
“A arte é mostrar as pessoas para as pessoas”.
Flávio Migliaccio, 2019.
Com sinceridade cativante e uma simplicidade única, assisti a uma das últimas entrevistas concedidas pelo saudoso artista Flávio Migliaccio para o programa “Autorretrato” da Rede TV Rio em 2019. O artista que partiu de maneira trágica em maio de 2020 durante a pandemia do coronavírus, que é bom relembrar ceifou milhares de vidas no Brasil e no exterior, trouxe à tona momentos marcantes de sua rica trajetória. Flávio era descendente de italianos que, como tantos outros, emigraram do sul da Itália para São Paulo impulsionados com o sonho de “fazer a América”. Aliás, esse movimento abrangeu as últimas décadas dos Oitocentos e as três primeiras do século XX, e ficou conhecido como o período da imigração em massa para América Latina (Fausto, 2000, p. 09).

Crédito da Imagem: Jornal da USP.
Embora não tivesse conhecido o idioma de seus antepassados, um fato de que se lamentaria tempos depois, a cultura italiana estava presente no seu cotidiano, especialmente em meio a uma imensa família de 11 irmãos, que se estabeleceu no Brás, um bairro que ficou famoso em razão dos imigrantes italianos. Ali, naquele bairro, junto a sua família, a sua mãe Jandira incentivava o gosto pelas artes, pois ela inventava brincadeiras e semeava no menino Flávio o desejo de atuar para os seus vizinhos.
Além dele, outros Migliaccio se destacaram nas artes como a sua irmã Dirce, a primeira atriz a interpretar na televisão a personagem Emília no Sítio do Pica-Pau Amarelo e como uma das “Irmãs Cajazeiras” na novela “O Bem-Amado”, entre tantos outros personagens emblemáticos e cômicos. Outro membro da família foi o pintor Edmundo Migliaccio, que revolucionou o universo das artes como um exímio retratista. Parece que a veia artística foi também transmitida pelo pai, Domingos, que tocava bandolim e violino. Ele também desempenhava o papel de músico acompanhante em uma banda que se apresentava nos cinemas durante as décadas de 1920 e 1930, quando os filmes mudos eram bem populares.
Apesar de uma forte inspiração dos pais, o ingresso no mundo artístico foi uma jornada repleta de muitos desafios a contar pela limitação financeira, que o levou a trabalhar como mecânico e balconista. O primeiro contato com o universo do teatro ocorreu quando participou de um grupo teatral de uma igreja durante três anos. Em 1954, decidiu acompanhar um amigo para uma audição em um grupo de teatro. Como ele bem relatou, não era a sua intenção inicial participar, mas realizou o teste e passou, ao contrário do seu amigo, que curiosamente havia o desencorajado em razão da sua “suposta” inexperiência.

Crédito da imagem: Memórias Cinematográficas.
Aliás, a audição ou o teste era para ingressar em um novo curso mais profissional do que o anterior, e que se inseria no programa comemorativo do Quarto Centenário de São Paulo em 1954. Essa formação foi promovida pelo italiano, natural de Veneza, Ruggero Jacobbi, que chegou ao Brasil em 1946, após a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), como diretor da Companhia Diana Torrieri. Jacobbi permaneceu em terras brasileiras durante catorze anos e desempenhou um papel significativo no fortalecimento da cena artística nacional, especialmente no campo da arte dramática.
O curso reuniu um seleto grupo de estudantes como Gianfrancesco Guarnieri e Oduvaldo Vianna Filho (Vianinha), que foram incentivados pelo italiano a criar o Teatro Paulista do Estudante em 1955, que, posteriormente, se fundiu com o Teatro Arena, e se tornou um dos principais grupos teatrais entre 1950 e 1970. O modelo adotado levava em consideração a realidade brasileira e a valorização da temática nacional-popular da cultura, o que inspirou outros grupos teatrais no Brasil. Como bem destacou a pesquisadora Berenice Raulino,
A iniciativa deveria ser cultural e popular, para conquistar o público distanciado do teatro oficial, como os estudantes — que naquele momento não frequentavam o teatro — e os moradores da periferia. O projeto previa apresentações em sindicatos, em praças, nas portas das fábricas, em clubes etc. (Raulino, 2005, p.81).
Nesse contexto, em 1958, a peça Eles não usam Black-Tie de Gianfrancesco Guarnieri, que contou com a participação de Migliaccio, inovou o cenário teatral paulista e a ação dramática que se centrava nos segmentos operários ganhou ressonância em outros segmentos da sociedade. Segundo Rosangela Patriota,
(...) Em meio a estas reflexões, Black-tie tornou-se não somente a representação de um país, que deveria ser discutido e analisado, mas uma força social que aglutinou em torno de si projetos e perspectiva de intervenções nos debates políticos e culturais. Estas motivações, aliadas à ideia de uma dramaturgia “nacional” e “crítica”, possibilitaram a constituição de um eixo a partir do qual o Teatro de Arena deveria nortear-se, para intervir nos debates daquele período (Patriota, 2006).
Em outro momento da entrevista para Rede TV Rio, Flávio Migliaccio enfatizou a importância do neorrealismo italiano e a sua contribuição para televisão na década de 1970. Até aquele momento, a dramaturgia na televisão brasileira era caracterizada pelo seu exagero e artificialismo, aspectos que refletiam a influência das novelas radiofônicas. Além disso, ele compartilhou a relevância que o neorrealismo teve para a teledramaturgia brasileira, algo que, sem dúvida, acompanhou toda a sua trajetória profissional. Para o artista, o neorrealismo estabelecia um diálogo com a cultura brasileira, pois retratava a realidade de maneira crua e honesta, e que refletia o cotidiano das pessoas comuns. Contudo, vale acrescentar que o movimento artístico foi uma reação à propaganda durante o regime fascista italiano, em meio à devastação provocada pela Segunda Guerra Mundial. Nesse contexto, a introdução do cinema italiano no Brasil implicou, naquele momento, no rompimento da hegemonia da indústria do cinema norte-americano.
Durante seus 66 anos de carreira artística, Flávio Migliaccio desempenhou múltiplos papéis no cenário cultural brasileiro, atuando como ator, produtor, diretor, cartunista e roteirista. São numerosos os personagens memoráveis, populares e cômicos que retratou tanto na televisão, como no cinema e no teatro ao longo de sua longa trajetória. Em 1972, ele fez sua estreia na novela "O Primeiro Amor", escrita por Walther Negrão, assumindo o papel de Xerife. Devido ao imenso sucesso, foi criado o seriado "Shazan, Xerife & Cia.", transmitido entre os anos de 1972 e 1974. Outro papel icônico foi o Tio Maneco, que Flávio Migliaccio reviveu, produziu e dirigiu nos filmes "As Aventuras do Tio Maneco" (1971), "O Caçador de Fantasmas" (1975) e "Maneco, o Super Tio" (1978).

Crédito da Imagem: Cinemateca do MAM.
Certamente, é difícil esquecer personagens como o pão-duro Moreiras em "Rainha da Sucata", escrita por Silvio de Abreu em 1990, assim como o feirante Vitinho em "A Próxima Vítima", também do mesmo autor, em 1995, bem como o turco Chalita, da série “Tapas & Beijos” (2011), de Cláudio Paiva, o personagem indiano Karan da novela "Caminho das Índias" (2009), criada por Gloria Perez. Há uma infinidade de outros personagens que marcaram a sua carreira. No entanto, não é possível mencionar neste breve texto. Sem dúvida, deixaram uma marca em muitos fãs, assim como serviram de inspiração para muitos outros atores, contribuindo para enriquecer a cultura e o cenário artístico brasileiro.
Assim, com o intuito homenagear esse grande artista brasileiro durante o próximo final de semana, nos dias 26 e 27 de agosto de 2023, a Cinemateca do Museu de Arte Moderna (MAM) acolherá o Primeiro Festival de Curtas Flávio Migliaccio. Este evento gratuito contará com a apresentação de 168 obras provenientes de todas as regiões do país, englobando as categorias de animação, documentário, experimental e ficção. Além das exibições, no dia 26, sábado, que marca o nascimento de Flávio Migliaccio, será inaugurada uma exposição fotográfica sobre a sua trajetória. O FestFlávio é uma realização da Frankfurt Produções, uma produtora carioca que já promoveu duas edições bem-sucedidas do Concurso Nacional de Dramaturgia Flávio Migliaccio.
Os ingressos gratuitos de todas as seções do Festival de Curtas Flávio Migliaccio já estão disponíveis em www.mam.rio/ingressos. ENTRADA FRANCA. Dias 26 de agosto sábado, e 27 de agosto, domingo.
Referências:
BARROS, Orlando de. A influência do neorrealismo italiano nos filmes brasileiros. Rio de Janeiro, RIHGB, out./dez. 2013. Disponível em: https://ihgb.org.br/revista-eletronica/artigos-457/item/108241-a-influencia-do-neorrealismo-italiano-nos-filmes-brasileiros.html Acesso em: 22 ago. 2023.
COMUNITÀ ITALIANA. Adeus, Flávio Migliaccio. Revista Comunità Italiana, 05 de maio de 2020. Disponível em: https://comunitaitaliana.com/adeus-flavio-migliaccio/ Acesso em: 22 ago. 2023.
FAUSTO, Boris (Org.). Fazer a América. São Paulo: EDUSP, 2000.
RAULINO, Berenice. A contribuição de Ruggero Jacobbi para o teatro brasileiro. Universidade Federal de Uberlândia, Ouvirouver, n.1, 2005.
PATRIOTA, Rosangela. Apontamentos acerca da recepção no teatro brasileiro contemporâneo: diálogos entre história e estética. Nuevo Mundo Mundos Nuevos, 30 jun. 2017. Disponível em: https://journals.openedition.org/nuevomundo/1528 Acesso em: 23 ago. 2023.
Programação e Catálogo do FestFlávio : https://festivalflaviomigliaccio.com/programacao/
*Luciene Carris é historiadora (UERJ).
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