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Entre a homocultura e o racismo: a lacração maldita de Adolfo Caminha

André Sena*

Toronto, 15 de junho de 2021.



Neste mês de junho de 2021, em que boa parte da comunidade LGBTQIA+ mundial comemora o Mês do Orgulho, alusivo aos Idos do Stonewall de 1969, pensei em contribuir para o combo desta quinzena com algumas reflexões sobre a obra O Bom Crioulo, escrita por Adolfo Caminha e publicada no Rio de Janeiro em 1895.





Uma das minhas motivações para o texto é não apenas a necessidade que sinto, como parte integrante dessa imensa minoria, representada por esta curiosa sequência de letras, de visitar elementos e vultos da inteligência brasileira (bem no estilo Wilson Martins) que possam de alguma maneira estruturar ou fundamentar a confecção de um mosaico homocultural nacional. Não que isso seja necessário, ou que a comunidade gay, lésbica e trans brasileira demande isso. Não parece demandar. Mas como historiador e homem gay eu nunca perdi de vista o desejo de uma possível arqueologia cultural gay da Pindorama. João Silvério Trevisan, Peter Fry, Luiz Mott e mais tarde James Green aguçaram ainda mais esta minha vontade.


Este último, escreveu juntamente com Ronald Polito uma obra, ao meu ver divertidíssima, chamada Frescos Trópicos. Fontes sobre a Homossexualidade Masculina no Brasil. 1870-1980, que considero um belo e pioneiro levantamento para uma história casual da comunidade LGBTQIA+ no país. O livro não alcançou vôos muito altos por razões fáceis de explicar, e que no meu entender são produto de uma simplória e sombria equação: a soma de uma sociedade sistemicamente homofóbica como a brasileira (o que se espraia pelo mercado editorial e cultural, salvo raríssimas exceções) com uma comunidade gay (e uso aqui a palavra no seu sentido complexo, aglutinador e original, portanto não exclusivamente gay-cis-masculino) muito pouco sensível ou desejosa de consumir produtos culturais que contem a sua própria história. Um estranho e trágico casamento entre o preconceito e a alienação.





Prova disso (e não a única) foi o desejo do cineasta brasileiro Luiz Carlos Lacerda em transformar O Bom Crioulo de Caminha em um filme, demarcando terreno e dando ao cinema brasileiro um título que nos contemplasse. Nunca conseguiu. Eu acompanhei de perto sua tentativa de convencer alguns gestores culturais e importantes figuras do ativismo gay brasileiro da importância de retratar nas telas do cinema nosso primeiro romance literário homocultural. Não foi possível. Hoje seria menos ainda em razão de outras suscetibilidades. Já o ator Pedro Paulo Rangel conseguiu nos brindar com um belíssimo audiobook, onde encontramos a obra dramaticamente recitada. Uma beleza!



Nascido em 1867, o cearense Adopho Caminha terá vida curta; falecerá aos 29 anos com uma vida literária rica e intensa para uma jovem carreira como a sua. Sua experiência como marinheiro por 5 anos, já no final do Império, lhe trará não apenas vivência como a possiblidade de observação empírica da vida naval, entre fragatas e corvetas, homens pobres brancos, negros escravizados, forros ou foragidos, que povoarão sua imaginação matematicamente seduzida por uma ciência literária que convencionamos chamar de naturalismo.


Não gosto do termo e prefiro, ainda que isso soe prepotente da minha parte, substituir naturalismo por realismo patético. Mesmo assim, voltemos a ditadura da nomenclatura: Adolfo Caminha, como exímio naturalista, buscará extrair do exercício da observação, intencionalmente objetiva, o máximo de material descritivo acerca dos aspectos radicalmente humanos da sociedade em que viveu ou por onde viajou. Um dos relatos mais interessantes feitos sobre os Estados Unidos do período da Reconstrução, por exemplo, é de sua autoria, No País dos Ianques, escrito dois anos antes de O Bom Crioulo, quando o autor circulou pela América do Norte.





O Bom Crioulo é o resultado da verve empirista em voga à época de Caminha. Entretanto não acredito que ele tenha simplesmente seguido a vaga dos naturalistas; acreditava nela e viu na dinâmica cotidiana da vida da marujada, mundo essencialmente masculino e profundamente homoerótico, a matéria prima para o romance que o levou ao estrelato, mais pelo escândalo do que pela apreciação, embora a qualidade do texto de O Bom Crioulo, no meu entender, seja inconteste.


Texto simples e direto, O Bom Crioulo tem no centro da trama a paixão pederasta entre dois homens: Amaro, de 30 anos e Aleixo, de 15. O uso da palavra pederasta aqui encontra-se absolutamente positivado: é grego e não cristão. Trata portanto essencialmente do amor e do desejo erótico entre um homem mais velho e seu paides: seu moço. Tema feito maldito em nosso mundo judaico-cristão, e à cuja maldição Caminha não foge. Longe disso: a confirma. O romance, que chega quase a uma dinâmica marital, com encontros periódicos em um quarto alugado na Rua da Misericórdia, não frutificará. Aleixo, jovem loiro e livre em uma sociedade escravocrata (o romance lançado em 1895 é sugestivamente retroativo) tem a possiblidade da redenção, apaixonando-se por uma mulher, de 38 anos e trocando seu companheiro por ela.


Amaro (nome curioso, que nos remete ao amargor da escravidão) não resiste a escolha de seu amado por uma mulher e enlouquece, capitulando ao alcoolismo, a melancolia e à violência. O ápice do romance naturalmente aponta para a tragédia de um assassinato a navalhadas. Amaro mata Aleixo, confirmando seu temperamento violento e selvagem, tal como o amor que sentia por seu moço. Aqui Caminha nos apresenta um contraste no estilo chiaroscuro: Bom-Crioulo é o apelido de Amaro quando servia como marujo na embarcação que Caminha chama de A Corveta, e onde conheceu o jovem grumete Aleixo. O alcunha relaciona-se ao seu corpo atlético, onde não se via um osso sequer, apenas músculos, bem como ao seu temperamento dócil, cordato e servil. Em contato com o amor e com o desejo (e com a negação de ambos pela rejeição de Aleixo) é a violência que aflora, revelando a verdadeira natureza assassina do personagem.




Faca de dois gumes, radicalmente ambíguo, O Bom Crioulo de Adolfo Caminha foi condenado duas vezes. Pela sociedade branca, elitista, racista e vulgar de sua época e por uma outra que conseguiu nas asas do tempo denunciar o racismo sistêmico brasileiro, vendo na obra do naturalista um libelo racial e eugênico, que produz mas desserviço do que luz para os nossos tempos. Cancelado, alguns inclusive o chamam de subliteratura ou de ferramenta literária racista. Já eu, viado, o considero também um texto que fala da possibilidade da paixão entre dois homens, e dos seus desafios em um mundo onde isso era absolutamente praticado quando universalmente impensável. Meu lugar de fala gay é legítimo o suficiente para resgatar Caminha do lodaçal. Sem nunca cair na armadilha de defender as imagens e os elementos literários de sua época.


*André Sena é Doutor em História (UERJ).

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