Toronto, 01 de setembro de 2022.
André Sena*
Um dos nomes mais badalados que vem discutindo o papel da educação de forma universal nas escolas, alguém que sigo de perto no Instagram e ouço com bastante atenção é Taylor Mali, educador norte-americano, poeta residente do Brooklyn, e que vem cada vez mais chamando atenção tanto para o papel transformador da Educação como para o quanto está última vem reformando a si mesma, tanto em propósitos quanto em procedimentos. Mali não tem a pretensão de ser um epistemólogo, dedicado a questão dos saberes complexos, como fez Edgard Morin, especialmente nos primeiros dois volumes de O Método, mas suas dicas têm inspirado educadores no mundo inteiro, inclusive na instituição onde leciono atualmente.
Crédito da imagem: UNESP.
Em uma de suas dicas, ele aponta para a necessidade de se pensar uma educação desprovida da arrogância missionária da produção de gênios, ou da falácia educacional positivista que, na direção contrária, buscou “iluminar as massas” na medida certa, para o bom serviço, criando o mito da mão de obra técnica bem qualificada, exclusivamente pelos bancos escolares. Taylor Mali nos estimula, tanto nas suas falas digitais em rede, quanto em sua obra What Teachers Make: In praise of the greatest job in the world, a desejarmos uma Educação mais envolvida com a grave e urgente tarefa de produzir em nossos alunos e alunas a vontade de conhecer, e a partir dessa vontade construir um caminhar de vida naturalmente criativo, soberano e deliciosamente original, muito mais capaz de preparar pessoas para as contingências da vida e surpresas do futuro.
O modo como os saberes que convencionamos chamar de Humanidades são expostos nas escolas brasileiras, apesar da intrepidez de nossos professores e de sua luta diária contra milhares de contrafluxos diferentes, continua sendo caótico, e o modo como o tema Independência do Brasil vem sendo trabalhado desde a minha vivência como aluno até os dias de hoje, agora professor, é talvez um dos melhores exemplos disso, sendo ultrapassado apenas pela temática do “‘Descobrimento’ do Brasil”, cujo título já por si só mostra-se absolutamente problemático, nebuloso e passível de intensa crítica.
Um dos primeiros influxos que vemos nos bancos das salas de aulas de História ao discutir-se o que ocorreu no Brasil há duzentos anos é que a Independência não foi na realidade uma independência. Não me oponho a historiadores como François Furet, por exemplo, que em obras como Pensando a Revolução Francesa enfrentam de forma agressiva o próprio conceito de revolução, quase a nos dizer que nada de realmente consistente passou-se quando caiu a Bastilha em 1789. Ou a historiadores como Arno Mayer, que em A Força da Tradição entende as permanências do Antigo Regime como algo muito mais elástico do que uma historiografia de cunho marxista (à la Michel Vovelle) poderia imaginar.
São esses grandes historiadores, que de fato merecem a nossa cuidadosa leitura. Mas algo se passa quando adentramos nossas salas de aula, especialmente ao nos colocarmos diante daqueles que, mais jovens que nós, parecem (e apenas parecem) mais vulneráveis. Acalmem-se! Nem de longe eu cogito a ideia de doutrinação em sala de aula. Ter mudado de carreira recentemente, e retomado meu ofício de professor junto ao público infanto-juvenil tem sido uma das minhas maiores alegrias, e nunca, nem nas universidades onde lecionei no Brasil por quase 20 anos, nem na escola onde trabalho hoje, me senti um doutrinador, ou vi esse espectro rondando meus colegas. Doutrinadores não sobrevivem às salas de aula. Professores, esses sim, são a sua alma mater, junto com seus alunos, em um complexo e mágico processo de criação de saberes e estímulo à curiosidade.
O que se perde em sala de aula ao abordar a Independência do Brasil como algo inexistente, ou como uma “querela de família”, ou apenas como “uma troca de donos e, portanto, de uma eterna dependência do Brasil, de Portugal à Inglaterra”, é uma oportunidade de, ao reconhecer a concretude do 7 de setembro, explorá-lo de lugares nunca dantes navegados pelos nossos alunos.
A partir de uma abordagem mais voltada para a geopolítica e relações internacionais, podemos encantá-los, ao colocar diante deles uma análise sobre a Independência do Brasil a partir das novas relações de poder mundiais, especialmente entre as potências internacionais, que passam a ser travadas, sobretudo após a Revolução Diplomática de 1756, também conhecida como a Quadrilha dos Estados, passando pela Revolução Americana de 1776 e a Francesa de 1789. Trocas de alianças, convulsões sociais, rebeldias coloniais. Que prato cheio formidável para discutirmos de que maneira podemos inserir a formação histórica do Brasil independente a partir dessas dinâmicas.
Por outro lado, podemos tentar compreender de que maneira processos domésticos brasileiros podem compor, na verdade, um intricado mosaico, onde a Independência aparece como mais uma peça desafiadora. A Revolta de Vila Rica de 1720, a Conjuração Mineira de 1789 e a Baiana de 1798. Como países iniciantes como os Estados Unidos ou nascentes como o Haiti, eram lidos, a partir de um contexto regional e proto-panamericano, pelas elites letradas, lideranças políticas e outras clivagens sociais brasileiras que se puseram a conspirar contra Portugal em diversos momentos da nossa história, onde o Ipiranga pode surgir como mais uma pincelada de fôlego em nossa formação.
Há ainda espaço para pensarmos nossa Independência a partir das relações étnico-raciais e de gênero. Porque não analisar 1822 a partir desses lugares de memória que podem incluir a formação de nossos quilombos desde o século XVII (utilizando o conceito de longue durée para analisar a história de 1822, sem cair em qualquer tipo de anacronismo sinistro) ou até mesmo tentando compreender a questão da escravidão nesse processo de emancipação política que foi 1822? Ou ainda a contraproposta dos baianos, entre 1823 e 1824, e a participação importante de figuras como Maria Filipa, a insurgência das mulheres de Itaparica, a serena e intrigante participação de Leopoldina de Habsburgo em nosso possível divórcio com os portugueses. Há tanto a ser explorado.
Mas a zona de conforto do discurso que afirma uma independência que nunca existiu parece ser muito mais atraente, na verdade uma tentação irresistível, o que explica em muito a apatia quase generalizada com relação ao Bicentenário que marca este ano de 2022, somado a “resistência instantânea” (e facilmente explicável...infelizmente) a atual mão de ferro oligárquica que desgoverna o Brasil desde o Planalto Central. Esse Bicentenário poderia ser nosso, de professores e alunos, mas preferimos entregá-lo de bandeja nas mãos de um grupo que nada saberá fazer com ele, a não ser mediocrisá-lo, com algumas raras e nobres iniciativas acadêmicas, que infelizmente não decantarão na direção de quem de fato importa: a juventude brasileira, sempre carente de uma aula de história que realmente faça sentido e produza nela a vontade de saber sempre mais para julgar em que poderá ou não se reconhecer como jovens adultos. Essa agora é a minha trincheira. Onde quer que se encontre a minha força de trabalho. No Brasil fora assim, e assim segue sendo onde vivo agora.
Viva o povo brasileiro.
Por aulas de histórias realmente libertadoras.
REFERÊNCIAS:
MALI, Taylor. What Teachers Make: In Praise of the Greatest Job in the World. Berkley, 2012.
FURET, Francois. Pensando a Revolução Francesa. Paz e Terra, 2012
MORIN, Edgard. O Método. Volume 1.A natureza da natureza. Sulina, 2003.
MAYER, Arno. A Força da Tradição. A Persistência do Antigo Regime. Ed. Companhia das Letras, 1987.
*André Sena é historiador (UERJ).
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