Toronto, 15 de abril de 2022.
André Sena*
Os últimos meses de 2022 nos reservam comemorações e surpresas. Estas últimas poderão, infelizmente, se traduzir em frustração, especialmente no que tange o futuro político imediato brasileiro. Entretanto, o décimo mês reserva no universo católico popular setentrional brasileiro uma das mais impressionantes manifestações populares em termos religiosos: o Círio de Nazaré, festa da “Senhora de Nazaré”, capaz de congregar pessoas na casa dos milhões. Certa vez assisti na UERJ a conferência de um antropólogo norte-americano que discutia o conceito de “adjacência religiosa”. O professor afirmou que um dos objetos mais caros dos antropólogos da religião que estudavam o fenômeno era o caso da fé mariana no Brasil.
Crédito: Arquidiocese de Belém.
Contudo é de outras adjacências que este breve ensaio trata, especialmente na esfera do contradiscurso, atravessado pela cultura de resistência, ao mesmo tempo que se percebe como marginal e complementar ao grandioso evento católico que ocorre todos os anos no norte do Brasil, em torno da figura de Nossa Senhora de Nazaré: a Festa da Chiquita.
O mês de outubro em Belém do Pará é marcado por uma expressão de fé e devoção que se confunde com a própria identidade paraense: o Círio de Nazaré. Nossa Senhora de Nazaré, padroeira do antigo Grão-Pará, terra de sonhos de liberdade. Foi ali que surgiram um conjunto de sementes políticas que matizaram de sangue, mas também de utopias o Brasil do Século XIX. Eram os idos do período Regencial e os paraenses fizeram sentir sua vontade de se autodeterminar como um povo livre.
A Cabanagem durou de 1835 a 1840 no Pará e envolveu não apenas oligarquias locais e elites políticas, como muitas vezes ouvimos em alguns bancos escolares. Ela foi uma mistura de forças que ferveram a região, envolvendo brancos, índios e negros; homens e mulheres em um processo de politização e rebeldia, que apontava para a necessidade da construção de uma sociedade menos assimétrica. Eduardo Angelim, um de seus líderes era um derrapante ideológico que apesar de filho das elites entendia que ou o Pará era de todos, ou não era de ninguém.
A Cabanagem foi massacrada. Desmobilizada. Passou do terreno à História. Mas os paraenses nunca deixaram de representar em alguma medida o espírito de liberdade e dignidade que ela incorporou enquanto durou. Devemos muito aos paraenses nesse sentido. Eles têm muito mais a nos ensinar do que o Carimbó e sua fé na vida e na Virgem.
A mobilização popular em torno de Nossa Senhora de Nazaré no mês de outubro impressiona. Não apenas como manifestação litúrgica, mas como expressão cultural de uma massa de homens e mulheres negros, pardos, brancos, índios, gringos, pobres, ricos, tudo. A grossura da corda em torno da berlinda de ouro por onde caminha a Santa entre o povo arranca lágrimas, pedidos, arrepios:
Ó virgem mãe amorosa, Fonte de amor e de fé Dai-nos a benção bondosa Senhora de Nazaré.
Curiosamente, à margem da corda e da berlinda ocorrem festejos que já duram 30 anos. Não contra a Santa, mas com ou apesar dela. Refiro-me a Festa da Chiquita, expressão da comunidade LGBTQIA+ paraense, e que resiste apesar da patrulha e da repressão. Ainda que não reconhecida oficialmente como parte do calendário oficial dos festejos do Círio, a Festa da Chiquita insiste em viver e deixar viver. Em respeito aos romeiros, ela só começa depois da Trasladação, já a noite. Se inscreve, portanto, no tempo profano, na sequência do tempo sagrado da procissão. Com esse gesto, a Festa da Chiquita oferece ao povo respeito e espaço, mas nem sempre os recebe de volta.
Crédito: Jornal Passaporte
O apoio recente de Fafá de Belém e Gaby Amarantos a festa tem sido como uma vitamina, mas ele só foi possível graças a indivíduos LGBTQIA+ que desde 1978 (e olha como aqueles tempos eram duros para quase todos!) buscam formatar na cena dos shows de drag-queens, apresentações de transformistas, travestis e misses gays uma certa militância cultural que fala de coisas as mais banais do mundo, como o direito de existir.
O documentário As Filhas da Chiquita, produzido em 2006 por Priscila Brasil e Vladimir Cunha tem imagens impressionantes do alcance popular da festa. Mas também mostra a polarização entre uma cultura religiosa que marca profundamente uma certa tradição moral brasileira (não a única…) e uma cultura LGBTQIA+ que se impõe como adjacente, resistente, insistente…porque gay também é gente.
Por toda noite o espaço onde a celebração ocorre ganha palcos com shows já homo culturalmente tradicionais. Drags comandam o espetáculo que vai da música a dança com performances as mais variadas. Luzes e sombras permeiam a noite, onde encontros proibidos na clareza do dia e no imperativo da suposta democracia brasileira passam a ocorrer com liberdade, frescor e ao mesmo tempo sempre sob o risco da insegurança e da violência homofóbica e transfóbica. O vale tudo da Chiquita é ao mesmo tempo afirmação e denúncia: afirmação da legitimidade dos nossos desejos e afetos. E denúncia de que em pleno século XXI eles ainda são quando muito tolerados, mas normalmente rejeitados como uma expressão efetivamente legítima de vida.
Na obra “O Homem que Amava Rapazes. E outros ensaios.” Denilson Lopes explora elementos da cultura pop no universo gay, queer e camp, especialmente a partir de um recorte de cultura de massa. As manifestações culturais LGBTQIA+ são percebidas pelo autor como algo que extrapola a simples manifestação pelo entretenimento, expressando ainda valores em torno da legitimidade da existência e presença de toda uma cultura e modo de vida de um grupo de pessoas que sofreram por séculos processos violentos de anulação existencial e silenciamento. A Festa da Chiquita se inscreve precisamente neste processo, especialmente em tempos em que novamente a comunidade LGBTQIA+ é colocada sob suspeita e ameaça dos velhos setores de sempre. Mas agora com a diferença que nós começamos a tomar consciência de que também estivemos sempre por aqui.
Ainda existem utopias no Pará, no Brasil, no mundo. A Cabanagem e seus sonhos ainda parecem fazer sentido.
*André Sena é historiador (UERJ).
REFEÊNCIAS:
COSTA DE BRITO, Arthur et al. Festa da Chiquita. Espaço Sagrado e Profano na Festa do Círio de Nazaré. Belém – PA. Revista de Geografia da UFPE. Vol.33, n.1 (2016)
LOPES, Denilson. O Homem que Amava Rapazes. E outros ensaios. Ed. Aeroplano, 2002.
COLEMAN, Simon. Pilgrimage as Trope for an Anthropology of Christianity. Current Anthropology, Volume 55, Supplement 10, December 2014.
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