Toronto, 15 de janeiro de 2022.
André Sena*
Nesta quinzena abro uma exceção para oferecer aos nossos leitores um texto que não se encaixa na linha temática que venho perseguindo desde a criação do Box Digital de Humanidades: a história do pensamento brasileiro. Moro atualmente em uma cidade marcada pelo que alguns especialistas já começam a chamar de hiper diversidade. Toronto é uma espécie de Meca para onde confluem nacionalidades e culturas de todo o mundo. Há épocas aqui em que se celebra no mesmo mês o Natal, Chanucá, o Ramadan, o Diwali e a Kwanza.
Crédito: New York Times.
Dentre as inúmeras diásporas que florescem por aqui, uma vem merecendo cada vez mais atenção, em função da reconquista do Afeganistão pela milícia Talibã há alguns meses, ainda em 2021. Só neste mês recebemos por aqui seis mil refugiados afegãos, e muitos mais virão, muitos deles aliados do Canadá em solo afegão, quando dos quase vinte anos de ocupação militar que o país sofreu por parte de grandes potências ocidentais.
Por esta razão acho importante que conheçamos melhor esta sociedade e civilização, o “cemitério dos impérios”, sempre dominado, quase nunca conquistado. Para tanto reapresento um texto sobre tema que escrevi faz alguns anos, e que ainda pode contribuir de alguma forma para, seguindo o conselho de Raymond Aron, esmiuçar a história dos povos afim de compreender melhor questões de natureza internacional. Após esta breve introdução a um velho texto, convido-os finalmente a sua leitura.
Crédito: The Guardian.
Quando em março de 2001 eu assistia pela televisão os bombardeios aos Budas de Bamyan pelo regime Talibã eu chorava de raiva. A tradição gandhara de esculturas e imagens do Iluminado povoou a Ásia Central na Antiguidade tardia e deixou inúmeras obras de arte sacra desde sistema religioso chamado Budismo. Basta lermos a obra de Daisaku Ikeda “O Budismo na China” para nos envolvermos com esse imenso universo de expansão do Budismo por toda a Ásia Central e Subcontinente indiano.
As imagens nos apresentam um precioso conjunto de estátuas que se esvaia em poeira diante do integrismo islâmico do Regime Talibã, que ocupava naquele momento o poder nesta misteriosa e desconhecida terra de infelicidades, o Afeganistão. Supreendentemente (ou nem tanto assim...) o Talibã volta ao controle do país em 2021, apontando para um tema pouco explorado por internacionalistas e muito por historiadores: as permanências e descontinuidades nas relações internacionais.
Curiosamente, o Afeganistão é um dos berços de nossa diversa e riquíssima Humanidade. Berço da Civilização Pashtun, que floresceu em cidades como Kandahar (origem do termo gandhara…do qual falei no outro parágrafo), Kabul, Peshawar, e de profunda influência cultural e política do complexo universo persa. Ainda hoje encontramos vestígios humanos e não-humanos deste cosmos infindável, que insiste em reaparecer em cada caverna daquelas terras.
O poeta contemporâneo franco-afegão Atiq Rahimi é um tradutor contemporâneo desse canto do planeta. Radicado na França, Rahimi busca mostrar ao mundo a humanidade de sua história, de seu povo, de sua comunidade imaginada, construída ao longo de séculos e séculos de luta, cobiça, exaltação e autenticidade. O conheci em 2005 e pudemos conversar muito sobre o Afeganistão e a civilização pashtun da qual ele como poeta se sente herdeiro e legatário.
O poeta exerce uma profissão difícil: a de traduzir para o ocidente a língua, o mundo, os modos e a história pashtun, palavra que no persa antigo se falava de outra forma: Afghan, ou افغان. Em português temos dele duas obras literárias que recomendo muito: Terra e Cinzas e Syngue Sabour, pela editora Estação Liberdade.
Os pashtuns são tão antigos que o grande historiador grego, Heródoto (considerado tradicionalmente como o “Pai da História”) os cita em seus escritos. Eles antecederam em muito o processo de aculturação que os subjugou após o surgimento da vasta expansão muçulmana pela Ásia Central. O Sultanato de Dehli os dominou, trazendo-lhes uma espiritualidade diferente sem a qual hoje eles não saberiam se reconhecer. Mas jamais conquistou inteiramente a alma afegã, o sein pashtun.
As potências modernas também olharam a região com cobiça suficiente para pisar suas botas imperialistas sobre aquelas montanhas de beleza inominável. O moderno Império Persa, liderado pela dinastia dos Safávidas, ocupou autoritariamente a região na primeira metade do século XVIII. Mas a resistência pashtun chama atenção aos olhos de qualquer historiador e eles conseguiram o que muitos povos daquela região só obteriam pelo menos 100 anos depois: soberania e independência, desenvolvendo-se como um ator internacional contemporâneo até os dias de hoje.
Os pashtuns lograram minimizar a influência da maior potência do século XIX em seu território, a Inglaterra, embora tenham perdido para a coroa britânica uma boa parte do que hoje conhecemos como Paquistão, com o estabelecimento da Linha Durand em 1893, ainda hoje a principal referência de fronteira entre os dois países.
Isso demonstra a tenacidade desse povo que no século XX lutaria duramente contra os soviéticos, expulsando-os de seu território, com ajuda americana, a bem da verdade. Mas ainda há muito a descobrirmos sobre a capacidade dos povos lutarem por sua própria liberdade, apesar dos jogos entre as grandes potências. Ahmad Massoud, o Leão de Panshir é um exemplo da resiliência pashtun antissoviética, mas especialmente de uma formidável capacidade de autodeterminação da milenar civilização pashtun na contemporaneidade. Como os Budas de Bamyan, Massoud também seria destruído, vítima de um atentado terrorista que ceifou sua vida.
A história dos povos deveria nos fascinar mais. Por trás de Budas arrebentados e destruídos pela ignorância e pelo integrismo religioso, pode haver uma incrível civilização que persiste no tempo e no espaço. E assim como uma árvore pode esconder uma floresta, o Talibã é apenas um aspecto sombrio de uma civilização guerreira e gigantesca, que busca se reencontrar em tempos assimétricos e brutais como os nossos.
André Sena é historiador (UERJ).
REFERÊNCIAS:
RASHID, Ahmed. Taliban: Militant Islam, Oil and Fundamentalism in Central Asia. Yale University Press, 2010.
ALI, Tariq. Confronto de Fundamentalismos. Ed. Record, 2004.
IKEDA, Daisaku. O Budismo na China. Ed. Record, 1988.
RAHIMI, Atiq. Terra e Cinzas. Um conto afegão. Estação Liberdade, 2002.
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