Rio de Janeiro, 15 de agosto de 2021.
Karla Gobo*
Este é um texto ensaístico produzido para o podcast “Mulheres públicas” que eu e Vilma Aguiar apresentamos e que está disponível no Spotify. Neste momento, eu procuro fazer uma reflexão para entender se este momento que estamos vivendo é apenas uma distopia que não tem sentido e que vai passar em breve ou se há aí elementos que a gente pode identificar como um projeto futuro de país.
Crédito da imagem: artista Lucimary Billhardt
O nosso presidente, que não é muito bom com as palavras, disse num jantar oferecido para formadores de opinião conservadores na Embaixada do Brasil em Washington em março de 2019: “Nós temos de desconstruir muita coisa, de desfazer muita coisa para depois recomeçarmos a fazer”. Ao final ainda disse ser Olavo de Carvalho o responsável, “em grande parte, pela revolução que estamos vivendo”. A gente poderia apenas colocar isso na conta da falta de habilidade discursiva dele. Seria fácil e simples, para usarmos uma metáfora futebolística “isso é apenas mais uma bobagem, bola pra frente”. Entretanto, olhando algumas movimentações de parcelas da sociedade, parece haver no nosso Presidente e no seu entorno uma vontade “revolucionária”.
De acordo com a Hannah Arendt, revolução é uma palavra que foi incorporada ao léxico da política apenas no século XVII e o seu significado inicial era de restaurar um Estado político anterior à tirania ou ao domínio colonial. Essa ideia de transformação do sistema político voltado à ampliação das liberdades cívicas só começou a ser conhecida na Revolução Inglesa (1640-1688) e se consolidou com a Revolução Francesa, aquela da liberdade, igualdade e fraternidade. Aquela também que levou à separação entre Estado e Igreja e à dessacralização e morte do Rei, de sua família e de boa parte dos aristocratas franceses.
Outra acepção interessante é da historiadora holandesa Beatrice de Graaf. Ela apresenta os conceitos de Terror revolucionário ou Terror vermelho, associados aos movimentos socialistas. E de seu contrário, o Terror Branco, que seria muito mais uma contrarrevolução, dirigida contra os supostos ativistas e dissidentes revolucionários. Supostos porque muitas vezes esse inimigo é muito mais fruto da imaginação alimentada por teorias da conspiração e informações falsas do que realmente reais.
Se a Revolução nas acepções originais é a imposição da liberdade frente à tirania, o governo Bolsonaro é uma Revolução às avessas, ou uma contrarrevolução, ou o Terror Branco de que fala Beatrice de Graff. Ela estaria muito mais próxima da chamada Revolução Iraniana em 1979 do que propriamente o sentido arendtiano do termo.
Como se sabe a Revolução Iraniana foi, de forma resumida, um movimento contrário às influências do Ocidente, notadamente dos EUA. Teve o apoio da URSS e a adesão de parte da classe média urbana, intelectuais e dos religiosos fundamentalistas mulçumanos xiitas. Após depor o Rei Reza Pahlevi, a ala religiosa isolou os demais apoiadores e instaurou um regime pautado no fundamentalismo religioso mulçumano xiita, com uma série de restrições individuais. Hoje no Irã as mulheres são obrigadas a usar o véu, bebidas alcóolicas são proibidas, somente casais casados podem andar pelas ruas e a homossexualidade é classificada como pecado e crime. Afinal, numa sociedade em que não há divisão entre Estado e Igreja, aquilo que é pecado também passa a ser crime.
Ao que parece, essa nossa Revolução está mais próxima desse conceito iraniano do que da Revolução Francesa, que teoriza Arendt. Jair Messias sonha em ser o nosso líder supremo e os grupos conservadores, notadamente religiosos, parecem aspirar também a esse Brasil acima de tudo e Deus acima de todos.
Por Brasil e Deus entende-se o Brasil da família monogâmica, hétero, nuclear, patriarcal, branca e cristã. Ao resto restaria se curvar ao projeto, se contentar com a exclusão, a violência e o risco de morte. Não preciso lembrar aqui que frases como “vamos metralhar a petezada” ou “...as minorias têm que se curvar às maiorias”, parece evidenciar esse desejo nada oculto.
Vamos trazer aqui dois exemplos do coração disso que estou chamando jocosamente de revoluçao bolsonaresca. Primeiro, na 46ª sessão do Conselho de Direitos Humanos da ONU, em fevereiro, Damares defendeu o direito à vida desde a concepção, ao contrário do que diz a nossa legislação e reduzindo ainda mais os direitos reprodutivos das mulheres. Só lembrando que o Brasil é líder na América Latina de meninas que foram forçadas a manter a gravidez contra sua vontade. Entre os anos de 1994 a 2019 foram 675.180 conforme o Datasus. Esse discurso fundamentalista assume várias formas, mas tem como foco prioritário questões ligadas à gênero e sexualidade.
Outro exemplo, no último mês de março o Brasil, representado pela Secretária da Família, a jurista Angêla Gandra, participou de um evento com parceiros estrangeiros que incluía representantes de partidos de extrema-direita da Europa. Na ocasião, ela revelou estratégias para impor a agenda ultraconservadora do Planalto por meio da implementação de programas supostamente direcionados a atender as famílias, mas afirmou que o foco é combater a "ideologia do gênero". Outro programa defendido pela Secretária foi o “família na escola” com o intuito de controlar os conteúdos escolares. Segundo ela, "O 'Família na Escola' é muito importante porque os pais não conhecem a ideologia que acontece na escola. Muitas vezes, se assustam ao ver os frutos ou o material. Há muita omissão também.”
Enfim, a aliança entre países islâmicos e cristãos ultraconservadores já vem sendo registrado nos últimos meses em diferentes temas relacionados à situação das mulheres na ONU. Por exemplo, o Brasil e países como Arábia Saudita, Paquistão e Iraque vetaram trecho de um projeto de resolução da ONU que defendia o acesso à educação sexual como forma de combater discriminação e violência contra mulheres e meninas. Sem contar que ainda pululam nos legislativos federal e estadual projetos no mínimo esquisitos, como o da “Cura gay”, da proibição da pílula do dia seguinte, da proibição da presença de pessoas LGBTQIA+ ou famílias homoafetivas em publicidade "voltada para crianças".
Claro que a gente pode relativizar o peso dessa loucura toda. Porque felizmente esses grupos ainda são a minoria no sistema internacional e no plano local há iniciativas no próprio legislativo ou judiciário que barram esses arroubos autoritários. Mas também não podemos deixar de acompanhar com certa apreensão o crescimento de poder de grupos religiosos na política e no judiciário.
Além do crescimento da bancada religiosa no Congresso, iniciativas como a Anajure, a Associação Nacional de Juristas Evangélicos, que é um grupo de pressão e de assessoria aos parlamentares para a criação de leis que vão ao encontro de sua visão de mundo, deixam os contornos dessa história um pouco mais preocupantes. Como vemos com certa frequência, o judiciário consegue dar interpretações variadas às leis. Então não causa espanto a habilidade de transformar um projeto que prevê o ‘tratamento’ psíquico de pessoas LGBTQIA+ em liberdade profissional para o psicólogo atuar. Ou o controle de conteúdo escolares por pais em “projeto família na escola”. Afinal quem pode ser contra a liberdade profissional ou a maior participação da família na escola. É um verniz democráticos para propostas que atendem as crenças religiosas de parte da população. Essa é a visão de mundo que se coloca como antiglobalista, defendida por Ernesto Araújo, ex-ministro das Relações Exteriores. Esse grupo acredita haver um movimento revolucionário global de homogeneização e imposição cultural que é demasiadamente liberal nos costumes. O que seria simplesmente respeito aos direitos humanos, às minorias vulnerabilizadas ao longo da história, para esse grupo é um projeto revolucionário com tintas comunistas e anticristãs.
E não podemos desacreditar do peso da religião e da sua influência na elaboração e na adoção de determinadas políticas públicas, uma pesquisa recente feita em vários países e analisada pelo Thimoty Power, aponta que 84% dos brasileiros associam os bons valores morais à crença em Deus. Em países mais ricos e sobretudo menos desiguais, o número de pessoas que acham que os valores morais estão relacionados com a crença em Deus é muito menor, na Suécia apenas 9% e na França 15%, por exemplo.
O caso brasileiro parece se adaptar bem ao que Beatrice De Graaf chama de Terror Branco. Não quer dizer que isso vá acontecer daqui há um ou dois anos, mas também não podemos ignorar que parece haver um projeto com fortes tintas de fundamentalismo cristão. E, embora ele venha encontrando resistência de algumas instituições até o momento, é fato também que esses agentes estão se organizando e ocupando espaços estratégicos na estrutura do Estado brasileiro para viabilizar os seus ideais. É bom ficarmos atentos, porque Gilead não parece estar tão longe assim.
*Karla Gobo é Doutora em Sociologia (UNICAMP) e Professora da ESPM-Rio.
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