Rio de Janeiro, 16 de setembro de 2023
Carlos Eduardo Pinto de Pinto*
Uma crônica pode ser escrita a partir de qualquer material, sei disso. Porém, sempre gostei das que nascem da/na rua, de uma coisa meio boba que a gente captura e transforma em texto. Pode até soar démodé, muito século XX, mas gosto de rua: barulho, bagunça, esbarrão, sujeira. Ok, ok, ok, já deve ter gente reclamando, pensando que nem toda rua é assim. Peço desculpas pela generalização, mas a realidade é que não moro em Berna, minha gente! Quis o destino que nascesse na Mui Leal e Heroica Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, onde caos e urbe são sinônimos. E para quem acha que isso é uma crítica, alerto: embora não seja um carioca típico, tenho orgulho de pertencer a essa terra. Repito: gosto de barulho, bagunça, esbarrão e sujeira. O meu problema é que estou sem tempo de ir à rua antes de escrever esse texto e, portanto, sem inspiração.
Já ia desistir da crônica, quando ouvi uma buzina de bicicleta, dessas que parecem um sino de missa. Percebi que há tempos venho ouvindo esse barulhinho com mais frequência, sem me dar conta do que isso poderia significar. O apartamento em que vivo, na divisa entre Tijuca e Andaraí, tem janela de frente, mas a sala fica nos fundos. E, como tenho o hábito de escrever na sala, o ruído das calçadas chega abafado, como se viesse de um passado longínquo ou de outra galáxia. Isso faz com que, salvo pelos gritos de “socorro!” ou “fogo!”, eu não preste muita atenção neles. Mas, talvez por estar pensando nas ruas e na sua importância como musas, fiquei com vontade de ouvir o que vinha de fora.
Deixei o texto de lado e fui me deitar no chão, perto da janela. Deve ter umas três décadas que não faço isso – ficar deitado no chão, de barriga para cima, olhando o teto. Estou me referindo a esse ato solene que é se deitar no assoalho só por se deitar, sem um motivo prático, como ler um livro, assistir à TV ou se exercitar. Logo me lembrei da infância, quando me instigava o modo como o mundo se transforma quando ousamos mudar o ângulo. O teto, de repente, parece o chão visto do alto. As paredes ficam mais alongadas, lembrando as de uma catedral. E a paisagem que vislumbro pela janela – um trecho de asfalto, alguns edifícios e um pouco de céu – ganha contornos surreais. Vizinhos pendurados como morcegos contemplam a paisagem. As plantas nos peitoris, com suas folhas flutuantes, equilibram vasos acima dos caules. Carros voam no asfalto, de ponta-cabeça. Fios de alta tensão sustentam postes e árvores. E quando uma criança joga um brinquedo por uma das dezenas de janelas, o objeto levita, ao invés de tombar no abismo azul.
A rua de cabeça para baixo (acervo pessoal do autor)
Mesmo fascinado com o que vejo, me lembro que meu objetivo ali é escutar. Tento me concentrar no que ouço, me recordando da noção de “paisagem sonora”, um instrumento criado por Murray Schafer para identificar e qualificar sons, ruídos e silêncios de um lugar. Fecho os olhos. Os carros circulando sem cessar me lembram o mar num dia calmo, enquanto o ônibus que acabou de passar seria uma onda rebelde, prenúncio de maremoto - o chão treme. De súbito, o silêncio. Coisa rara aqui no bairro, principalmente nesse trecho, com seus bares e restaurantes. Mesmo aos domingos, quando o ruído dos motores se arrefece, as conversas & músicas & brigas & urros de celebração pelos gols suplantam a calma.
Ouço mais um sininho de bicicleta e outro e outro. Como não tem ciclofaixa nem ciclovia por aqui, imagino que sejam os entregadores de aplicativo trabalhando, correndo para atender a urgência dos usuários. Quem também parece correr é o pessoal da serralheria, que identifico pelas máquinas estridentes rasgando as peças de metal. O carro do camarão vem em seguida, trazendo seus produtos de Cabo Frio. “Está fresquinho, o camarão! É rissole, é empadão, tudo fica gostoso com camarão, freguesa! O moço aceita cartão, o moço aceita cartão, freguesa!”. A buzina de ar do vendedor de doces soa duas, três, quatro vezes. Ele não grita nada, apenas buzina para indicar que está com sua bicicleta na esquina. Já o carro do ferro velho insiste que aceita “geladeira velha, fogão velho, aparelho de ar-condicionado velho” e emenda com a canção de louvor: “Uma nova história... uma nova história Deus tem pra mim, um novo tempo!”.
Um carro de som de algum sindicato não-identificado passa e creio que tente conscientizar os trabalhadores sobre a necessidade de parar, mas não estou bem certo se foi isso que ouvi. Poderia ser apenas a equipe de animadores de festa que veio cantar parabéns na portaria da Dona Arlete, por seus oitenta e cinco anos de vida dura, mas feliz. Seja como for, o veículo passa rápido e já parece estar longe. O vendedor de camarão recomeça, o doceiro também. Algum produto - qual? qual?? - está só R$5,99 o quilo, na esquina da Uruguai com a Conde de Bonfim. Todos os pregões juntos parecem protestar contra os sindicalistas, ou festejar Dona Arlete, ou talvez nem consigam ouvir uns aos outros, tamanho o fuzuê.
Ficar no chão já não é um prazer: sinto dor em diversos pontos (nuca, ombros, coluna, panturrilhas, pés) e desconfio de que não tenha começado agora. Talvez, como os ruídos, as dores venham se depositando sobre os dias. De repente, não sei bem por que nem para quê, fecho os olhos e me imagino estirado no asfalto, ouvindo os motores dos veículos, o carro do camarão, do ferro-velho, a buzina dos doces, a lâmina do serralheiro. Tudo roça meus tímpanos e me machuca. É um modo radical de estar na rua, eu sei. Uma forma desesperada de tentar me inspirar. Deixo o ar sair, com força, com raiva, com medo e uma pontinha de esperança. Conto até dez. Venho escrever.
Carlos Eduardo Pinto de Pinto é historiador e professor de história (UERJ)
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Muito bom, Duda. Sempre instigante ver um ponto de vista que sai da caixinha. Parabéns.