Guarulhos, 15 de outubro de 2023.
Luzimar Soares*
A hidra de muitas cabeças:
Marinheiros, escravos, plebeus e a história do Atlântico revolucionário
(Peter Linebaugh e Marcos Rediker)
A obra desses dois autores traz, como foco, as diversas insurreições ocorridas ao longo de quase dois séculos no Atlântico; tendo como protagonistas os homens do mar, suas relações, suas vidas, suas conquistas, suas perdas, seus desesperos e as formas de punição. Estas eram utilizadas pelos donos do poder para coibir a capacidade de articulação e de lutas desses trabalhadores, que estavam associados à primeira forma de globalização e circularização de mercadorias, informações e insurgência.
Héracles (Hércules) mata a Hidra de Lerna, François-Joseph Bosio.
Crédito da imagem: Museu do Louvre, Paris.
Em um trabalho de investigação minuciosa, os autores revelam a História Marítima de forma primordial. Assim como E. P. Thompson em “Costumes em Comum”, aqui também, Peter Linebaugh e Marcos Rediker trazem as formas de enfretamento de uma realidade cruel e desumana para com os trabalhadores. Comparados a um monstro que deveria ser domado pelo herói Hércules, as formas de resistências desses homens e mulheres do mar foram estudadas e, aqui, são mostradas para além das perdas dos homens, mas pela sua capacidade de luta de organização, bem como demonstra o poder do capitalismo de transformar, diminuir, desagregar e desarticular os trabalhadores; assim como o de transformar terras comunais em propriedade privada, expropriar e, por conseguinte, criar uma hidra de muitas cabeças famintas e exploradas.
Utilizando como fio condutor a lenda vivida por Hércules, a obra se inicia com a narração de um naufrágio, evento este que possibilitou uma sociedade de cooperação, ainda que as pessoas que ali aportaram fossem consideradas degeneradas. Esse era o perfil dos homens e mulheres levados para povoarem novas terras. Como forma de punição, os infratores da ordem estabelecida foram divididos em tipos diferentes, o que as autoridades inglesas chamaram de vigaristas:
Primeiro vinham os vendedores de rua, os sarrafaçais, homens e mulheres cujas pequenas transações constituíam o comercio da microeconomia. Em seguida estavam os dispensadores e feridos, ou os que fingiam de dispensadores e feridos, soldados e marinheiros cujo trabalho constituía a base da macroeconomia expansionista. Seguiam-se, em terceiro lugar, os remanescentes da subestrutura da benevolência feudal: alcoviteiros, supervisores, vendedores de indulgencias. Os animadores da época – malabaristas, esgrimistas, menestréis, domadores de ursos dançarinos, atletas e atores de entreatos – formavam o quarto grupo. Depois, ao mencionar os que exibiam conhecimentos de uma “Ciência astuta”, como quiromancia e fisiognomia, assim como adivinhos e “pessoas que se chamam a si mesmas de eruditas”, Popham descreveu o quinto grupo que atendia às necessidades intelectuais e filosóficas do povo. Finalmente, mencionava e seu preambulo “todos os andarilhos e trabalhadores comuns como fisicamente capazes, que usam a vadiagem e se recusam a trabalhar por salários razoáveis ou comumente oferecidos em lugares onde tais pessoas vivem ou permanecem, não vivendo de foram a garantirem o próprio sustento (p. 29).
Os indesejados da sociedade eram “transplantados” para a nova colônia, neste caso específico, a Virgínia. Na travessia oceânica, com o naufrágio, foram parar nas Bermudas. Construíram, ali, uma sociedade pautada pela colaboração, mas não puderam ficar. A sociedade ali constituída foi desmantelada por militares que não permitiam essa forma de vida.
A edificação de uma forma nova de sociedade necessitava de braços para erguerem, e, como é mostrado neste trabalho, duas funções estavam sempre sendo buscadas nos trabalhadores que deveriam criar essa nova forma. Estes eram os “rachadores de lenhas e tiradores de água”, ou seja, aqueles que deveriam, literalmente, fazer o trabalho pesado: a construção de portos e navios, a expulsão das pessoas das terras comunais, além de serem aqueles que estariam no mar, ou seja, os marinheiros.
Crédito da imagem: Amazon.
Esses trabalhadores que estavam no mar eram, também, trabalhadores da terra. Muitas daquelas consideradas tiradoras de água eram mulheres, essas também eram mandadas, expropriadas e utilizadas enquanto mão de obra para a ocupação de novas terras. Além de elas serem extremamente importantes, especialmente no período em que se construíram os canos, ou seja, quando a cidade de Londres passou a cobrar pela água depois da privatização do sistema de encanamento. Uma vez que os pobres não podiam pagar pela água, voltaram a carregar na cabeça o suprimento de água diária. Eles tiveram um papel importantíssimo no desenvolvimento do capitalismo, pois formavam um grupo de pessoas que eram escravizados embora não tivesse a cor da pele como base.
A formação de toda a mão de obra no período do comércio atlântico, reconstruída nesta narrativa, leva a cabo uma análise de como era essa mão de obra. Além das formas de punição, os trabalhadores não foram meros assistentes de seus próprios caminhos. Ao longo da escrita, muitos personagens (homens e mulheres), que criaram estratégias de lutas, montaram turbas de resistência e de enfrentamentos.
Os piratas se forjaram no mar e tiveram seus próprios códigos de ética nas águas Atlânticas. A vida era de muitos perigos, e o índice de mortalidade era extremamente alto. A cotidianidade nos navios estava permeada de doenças, fome e, claro, muita violência. As disputas internas e externas marcavam a vida de homens e mulheres do mar.
Aquilo que os poderosos chamaram de hidra[1] era cada vez que os excluídos e oprimidos se organizavam e enfrentavam o status quo, ou seja, a organização e enfrentamento das formas de barbarizar e explorar suas vidas. Ao longo do período estudado, muitas foram as insurgências: nos bares, nas ruas, nas embarcações, e por fim nas prisões, homens e mulheres se encontraram para traçarem seus planos de resistência. Essas estratégias tinham circularidade e pessoas da Jamaica, assim como da Virginia, sabiam das turbas e hordas acontecidas nos outros domínios.
Como forma de conter essas turbas e hordas que sabidamente eram heterogêneas, as autoridades usavam, como maneira de punição, a violência explícita. Muitas e muitas vezes os castigos eram feitos em etapas: amarrar os presos, espancá-los, cortá-los e, por fim, enforcá-los para depois esquartejá-los e, então, distribuir seus corpos em pedaços pelas cidades ou navios. E, assim, mostrar aos demais insurgentes o que lhes aconteceria caso tentassem subverter a ordem estabelecida.
O período estudado é, também, aquele em que ocorreu o tráfico de pessoas escravizadas. Essas pessoas retiradas de seus habitats e levadas a força como mercadoria foram parte significativa do desenvolvimento do sistema capitalista. A precificação de pessoas que eram arrancadas de suas vidas e negociadas como quaisquer outras mercadorias foi um dos motivos das turbas de resistência. Os negros e negras escravizados eram o principal capital de alguns senhores, ou seja, o que eles tinham era exatamente aquilo que os escravizados produziam. Portanto, usufruindo daquilo que seus escravos produziam, tornavam-se cada vez mais ricos.
Assim como os donos do poder que utilizavam da religião como forma de manter e justificar seus abusos, serviu como mote para construir a ideia de que os homens tinham não somente direito à liberdade, mas também, às terras que haviam sido cercadas e tomadas por tiranos e repassadas a seus descendentes. O pensamento baseado nos princípios bíblicos se pautava na ideia do Jubileu. Ideia esta que trazia, em seu bojo, seis princípios: “Primeiro, o Jubileu acontecia a cada cinquenta anos. Segundo, restaurava a terra aos proprietários originais. Terceiro, anulava dívidas. Quarto, libertava escravos e servos. Quinto, era um ano de pousio. Sexto, era um ano em que não se trabalhava. (p.304)”. Todas essas afirmativas davam, aos oprimidos, esperanças e crenças de que deveriam lutar, buscar suas vidas e enfrentar a opressão, a escravização, os castigos, expropriações e invasões.
O surgimento do trafico de pessoas para serem escravizadas, as revoluções acontecidas na América do Norte, no Caribe e na Europa, os irlandeses e ingleses pobres escravizados, ou expropriados, os castigos impostos, as religiões como forma de manter a obediência ou ainda como forma de luta, as constituições de organizações clandestinas de trabalhadores livres que se uniam independentemente de suas cores (pois, eram todos oprimidos), foi tudo mapeado e estudado ao longo da obra. A hidrarquia de baixo para cima que se formou na heterogeneidade e enfrentou tantas vezes o poder constituído, e que foi comparada à Hidra que deveria ter sua cabeça decepada, foi em grande parte “derrotada”, quando o componente racismo entrou em cena e separou os operários ingleses em nacionais, e os negros segregados, povos da diáspora e diminuídos por sua cor.
Quando as baixas começaram a acumular-se depois das expedições britânicas contra o Haiti em 1795-6, o pânico – e o racismo – espalhou-se pela sociedade. Foi esse, como vimos, o momento preciso em que a categoria biológica da raça se formou e disseminou na Grâ-Bretanha e na América, e, não menos importante, o momento da formação da categoria política e econômica da classe (p. 368).
Em seus nove capítulos, uma obra de mais de 400 páginas que abrigou uma pesquisa profunda, bem estruturada e pautada pela busca de visibilizar as lutas dos povos esquecidos, a construção da historiografia dos homens do mar, (aí inclusos aqueles que estavam em terra nas cidades portenhas), é uma obra primorosa. Traz em seu arcabouço, além das formas de resistência e insurgência, as muitas manobras de um sistema em seu surgimento (o capitalismo), além de seu desenvolvimento ao longo dos dois séculos analisados.
Com uma narrativa empolgante e repleta de informações, mapas, gravuras, ilustrações e uma construção pautada por investigação consistente e séria, a obra mostra a capacidade de luta de uma classe de trabalhadores que, mesmo sendo subjugada, maltratada, cortada, machucada, penetrada, lacerada, etc., sempre ressurgiu e continuou lutando. Traz muitos personagens que foram apagados ou esquecidos pela história oficial durante muito tempo. Traça um comparativo entre o trabalhador inglês das fábricas e o escravizado na construção e disseminação do capitalismo.
Uma obra riquíssima e de extrema importância para compreender a História Marítima enquanto História Social. A travessia do Atlântico pelo povo escravizado foi cruel e, em alguns casos, para aliviar o peso, os aprisionados eram jogados ao mar vivos. A forma de trazer à luz essas informações é primorosa. Os dois autores brindam o leitor com muitas descobertas. Ademais, possibilita perceber o surgimento de algo tão danoso para a sociedade como é o racismo. Enquanto as lutas foram heterogêneas, todos estavam buscando os mesmos direitos, bem como, trazem à tona o pensamento de partilhar, ou seja, mostra que o uso das terras de forma comunal foi usurpado do povo, trazendo miséria e degradação humana.
Cada vez que alguém, seja ele pensador, filósofo, trabalhador, ou aglutinador, trouxe a ideia de comunismo e de divisão de bens como forma de diminuir a miséria, foi aprisionado, torturado e morto. O trabalho aqui analisado mostra, com clareza, que a busca por liberdade, igualdade e fraternidade sempre foi sangrenta, e que as turbas, hordas e hidrarquias formadas ao longo da história existiram e resistiriam. Aqui, encerro a análise com o pensamento de Gayatri Chakravorty Spivak de que o subalterno não pode falar, a não ser que seja através da insurgência. E, insurgência é revolucionária.
Peter Linebaugh é historiador americano, marxista e especialista em história Britânica, história do Atlântico, dentre outras. Foi aluno de E. P. Thompson. É professor e, dentre suas obras, está “A hidra de muitas cabeças”.
Marcus Rediker é historiador americano, professor de História do Atlântico, militante de causas pela paz e justiça social. Entre seus escritos está a obra acima com Peter Linebaugh.
Referências:
LINEBAUGH, Peter. A hidra de muitas cabeças: marinheiros, escravos, plebeus e a história oculta do Atlântico revolucionário. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.
[1] “a Hidra foi despertada. Cada Boca facciosa vomitou pragas contra a Grã-Bretanha, e a Imprensa jogou tudo contra a escravidão” (p.243).
*Luzimar Soares é historiadora (PUC-SP/USP).
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