Luzimar Soares*
Guarulhos, 01 de março de 2022.
As construções das relações sociais são dadas muito em razão das posições econômicas, ou seja, aqueles que têm poder e dinheiro decidem muitas das interações de uma forma hierarquizada de cima para baixo. Esse tipo de estruturação coloca sempre o trabalhador em situação de servo e, porque não dizer, de objeto de uso para o deleite daqueles que são detentores dos meios de produção.
Crédito: Freepik.
A existência de uma sociedade que coloca algumas profissões, ainda, como aquelas que aguçam o desejo sexual é danoso para os profissionais que se dedicam em seus trabalhos. Curiosamente, a maioria dessas ocupações estão relacionadas ao cuidado, àquelas pessoas que exercem seus ofícios prestando o serviço de cuidar: enfermeiras, bombeiros, secretárias, comissárias (os) de voo, etc. É justamente sobre essa última profissão elencada que quero me ater agora.
Durante muito tempo, as mulheres foram a maioria esmagadora nessa profissão, e isso não se deu em razão de sermos dóceis, mas, especialmente, por fazermos parte de uma estratégia das companhias aéreas. Como Naomi Wolf fala, a comissária de bordo, juntamente com outras profissionais, tivera seus trabalhos atrelados à mística sexual. Segundo Naomi:
Simultaneamente promoveu-se uma sexualizada mística comercial da comissária de bordo, da modelo e da secretária executiva. A jovem mulher que trabalhava foi restrita a um estereótipo que usava a beleza para abalar tanto a seriedade do trabalho desempenhado quanto as implicações de sua recente independência.
Aqui, a autora se refere a um período histórico no qual as mulheres haviam conseguido alcançar uma sonhada liberdade, o direito de trabalhar, de morar sozinha e de decidir a própria vida. Essa luta do feminismo, que para a sociedade atual é algo normal, não foi sempre assim. Na realidade, a mulher conquistou seus espaços sempre depois de muita luta, todavia, a sociedade machista sempre conseguiu uma forma de diminuir essas conquistas. O ataque à mulher vem de muitas maneiras, e uma delas é, justamente, colocá-la enquanto objeto sexual.
Chegando à atualidade, eis que, na última semana, deparei-me com uma reportagem esdrúxula de uma jornalista chamada Thaís Oyama, do canal UOL, falando sobre a profissão de comissário (a) de bordo. Na reportagem, ela usa argumentos colocando esses profissionais como totalmente irresponsáveis, já que diz que: “bebem durante o trabalho”, “fazem sexo com passageiros a bordo” e, que, no pernoite, está “tudo liberado”. O Sindicato Nacional dos Aeronautas publicou uma nota de repúdio. Nessa publicação, dentre outras coisas, o sindicato coloca parte da Lei do Aeronauta (Lei 13.475 ̸ 17), bem como se posiciona contra essa narrativa:
Ainda que seja um suposto relato de um profissional único, a reportagem peca ao usar manchetes sensacionalistas em que associa a carreira de comissários de voo a “vida louca" e a “sexo e bebedeira”. Ademais, a reportagem em nenhum momento alerta para as reais funções e para a importância desta profissão. Em nome de toda a categoria, o SNA reitera que a série de reportagens contribui negativamente para a criação de uma imagem absolutamente falsa a respeito de toda uma classe de profissionais, de maneira injustificada e covarde.
Em sua “reportagem”, a jornalista coloca os trabalhadores (incluindo os pilotos) como pessoas desequilibradas, já que diz que nos pernoites está “tudo liberado”, relacionando os profissionais da aviação a uma postura irresponsável, especialmente quando atrela o comportamento desses trabalhadores à sexualidade, ou melhor, à prática de sexo com passageiros.
Gostaria de salientar que a aviação é uma indústria extremamente exigente com seus profissionais. Os trabalhadores necessitam de habilitações técnicas e de saúde, e, além disso, as empresas podem aplicar testes toxicológicos. Há uma regulamentação própria que trata sobre suas atividades. Convido a distinta jornalista a dar uma lida na lei que citei acima.
Para além da irresponsabilidade das palavras, a reportagem dividida em três “boxes”, coloca a integridade física, moral, laboral e matrimonial em risco, ao deturpar os profissionais e ao retratá-los como totalmente irresponsáveis, além, de infiéis. Ela não se importou com o peso das palavras, não levou em consideração que são pessoas com vidas estruturadas. Muitos desses profissionais são casados (as), têm filhos (as), ou seja, existe uma infinidade de pessoas que serão afetadas com a irresponsabilidade de uma reportagem tacanha e mentirosa.
Ainda que a reportagem tenha utilizado uma entrevista com um "pseudo comissário" para alicerçar suas afirmações, desconsiderou que o entrevistado pode ser alguém que pratica o que disse, mas não fala pela categoria. Assim, ela não se preocupou em saber sobre as leis que regem a profissão, foi leviana nas colocações. Desonestidade nas afirmações são encontradas o tempo todo, mas classificar toda uma categoria de trabalhadores baseada nas afirmações de um único “entrevistado” e jogar essa reportagem nas redes sociais com as chamadas que fez é muito além de desrespeitoso, é cruel e coloca em risco os profissionais.
Desde o ano de 1984, os profissionais da aviação brasileira têm legislação própria. Através da Lei 7.183 de 05 de abril de 1984, para adequar a nova demanda da sociedade, essa lei foi substituída por uma nova em 28 de agosto de 2017, a Lei 13.475. Caso alguém tenha interesse, convido e fazer uma leitura, especialmente a jornalista da UOL, quem sabe ela consiga compreender as exigências para se tornar um trabalhador da aviação.
A fetichização das profissões não surgiu agora. Obviamente, todos os profissionais sabem disso. Todavia, reportagens como essas não cabem mais na atualidade. Mulheres e homens que saem de suas casas e deixam suas famílias, amigos, abrem mão da vida social, ficam longe de quem amam em datas especiais (tais como Natal e Ano Novo), seguem as regras e imposições legais, dedicam-se a estudar manuais (muitos), fazem provas semestrais (pilotos) e anuais (comissárias/os), não podem ser retratados como irresponsáveis por um jornalismo sensacionalista que busca a matéria pela matéria, sem pesquisar.
Desinformar, difamar, desonrar, aviltar, deslustrar, infamar, injuriar, macular, manchar, rebaixar, etc., é o que faz essa reportagem grotesca, desprezível e torpe. Sou historiadora, todavia, também sou comissaria de bordo, no exercício da profissão há mais de 20 anos, e nunca me senti tão insultada.
*Luzimar Soares é historiadora (PUC-SP).
Referências:
OYAMA. Thais. Bob, o comissário de bordo. Notícias, UOL, 22 de fev. 2022. Disponível em: www.migly.in/cd7O Acesso em: 28 de fev. 2022.
WOLF, Naomi. O mito da beleza: como as imagens de beleza são usadas contra as mulheres. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2019.
Nota de repúdio: Reportagem de Thaís Oyama no UOL sobre profissão de comissários, Sindicato Nacional dos Aeronautas, 23 de fev. 2022. Disponível em: www.migly.in/JtsY Acesso em: 28 fev. 2022.
Lei n. 13.475. Dispõe sobre o exercício da profissão de tripulante de aeronave, denominado aeronauta; e revoga a Lei nº 7.183, de 5 de abril de 1984. Disponível em:
www.migly.in/CHRb Acesso em: 28 de fev. 2022.
Lei n. 7.565. Dispõe Dispõe sobre o Código Brasileiro de Aeronáutica. Disponível em:
www.migly.in/IVg6 Acesso em: 28 de fev. de 2022.
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