Rio de Janeiro, 06 de janeiro de 2023.
Luciene Carris*
Ainda estamos na primeira semana de 2023, o ano mal começou, mas as expectativas pessoais para o ano continuam em alta. Além disso, o surto pandêmico do coronavírus, ao que parece, se atenuou com as doses da vacina. É bem verdade que ainda nos deparamos com conhecidos infectados pelo vírus, mesmo que tenham sido vacinados, com sintomas mais brandos até. O fato é que, pelo menos para muitos brasileiros, a esperança se espalhou. Por outro lado, para outros o ar ainda é de desconfiança ou de descrédito. O certo é que estamos no sexto dia do mês de janeiro. Inegável esquecer da celebração com a família e amigos na virada do último sábado na praia. Pelo menos, a minha passagem de final do ano foi bem assim, diferente dos últimos dois anos em casa.
Crédito da imagem: WIX.
Assim, a esperança nos contagiou. E o dia seguinte começou com aquela ressaca habitual do dia anterior da festa profana. É bem verdade que um ou outro desconhece que o dia 01 de janeiro seja um feriado internacional, e que se comemora nesta data o Dia Mundial da Paz e da Fraternidade Universal, aparentemente adotada por muitas nações no mundo. Fraternidade como um conceito filosófico se encontra no tripé do pensamento revolucionário francês de 1789: liberdade, fraternidade e igualdade. De acordo com o dicionário significa: "a a harmonia e união entre aqueles que vivem em proximidade ou que lutam pela mesma causa; laço de parentesco; irmandade".
Outro fato significativo do primeiro dia do ano foi a posse de um novo presidente, Luís Inácio Lula da Silva, marcado pelo simbolismo de uma festa popular que trouxe um ar de representatividade e inclusão. Aliás, não me recordo na história política recente do país de uma festa com intensa participação popular até na entrega da faixa presidencial, situação que foi amplamente divulgada em inúmeros jornais. A semana ainda não terminou, sucessivos ministros têm tomado posse com pronunciamentos e discursos enérgicos, alguns até coléricos. Mas um deles me chamou a atenção de maneira mais íntima e pessoal. A criação de um Ministério de Direitos Humanos e Cidadania surge também como um desafio real. E assim foi o discurso do então empossado ministro Silvio de Almeida que reproduzo:
Vou dizer coisas óbvias aqui: Trabalhadoras e trabalhadores do Brasil vocês existem e são valiosos para nós; mulheres do Brasil, vocês existem e são valiosas para nós; homens e mulheres pretos e pretas do Brasil, vocês existem e são pessoas valiosas para nós; povos indígenas desse país, vocês existem e são valiosos para nós; pessoas lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, travestis, intersexo e não binárias, vocês existem e são valiosas para nós; pessoas em situação de rua, vocês existem e são valiosas para nós; pessoas com deficiência, pessoas idosas, anistiados, filhos de anistiados, vítimas de violência, vítimas da fome e da falta de moradia, pessoas que sofrem com a falta de acesso à saúde, companheiras empregadas domésticas, todos e todas que sofrem com a falta de transporte, todos e todas que têm seus direitos violados, vocês existem e são valiosos para nós.
Desse modo, depois de ouvir atentamente cada uma de suas palavras, me encontrei refletindo sobre a ideia de sermos valiosos para o país, bem como termos a nossa existência reconhecida. Um discurso que vai na contramão de uma fala polêmica de 2020 do economista Paulo Guedes, ministro anterior da pasta da Economia, que aproveito para reportar integralmente:
O câmbio não está nervoso, (o câmbio) mudou. Não tem negócio de câmbio a R$ 1,80. Todo mundo indo para a Disneylândia, empregada doméstica indo para Disneylândia, uma festa danada. Pera aí. Vai passear ali em Foz do Iguaçu, vai passear ali no Nordeste, está cheio de praia bonita. Vai para Cachoeiro de Itapemirim, vai conhecer onde o Roberto Carlos nasceu, vai passear no Brasil, vai conhecer o Brasil. Está cheio de coisa bonita para ver — disse o ministro, durante um evento em Brasília
O certo é que o discurso de viés classista/excludente viralizou negativamente nas redes, e me incomodou sendo filha de empregada doméstica. No ano seguinte, ele disparou outro “inusitado” comentário sobre os filhos de porteiros, algo que novamente me enfadou. Sou nordestina, afrodescendente, filha de pai zelador e mãe empregada doméstica, ambos já devidamente aposentados. “Empregada doméstica indo para Disneylândia”, seguido pelo discurso de demérito em razão do programa de concessão de bolsas de estudo ou cotas para acesso ao ensino superior não soou muito bem, o que repercutiu numa enxurrada de críticas de muitos indivíduos como eu. No fundo, o sentido do questionamento era outro, se constatava ali na sua fala o estranhamento/´preconceito de filhos de porteiros na universidade. Desta vez, houve um posicionamento particular, que soou como desabafo pessoal. Então, eu e um amigo decidimos organizar uma “live”, que intitulamos de “Como eu te incomodo? Dois filhos de porteiros e suas trajetórias universitárias” (está nas referências), na qual descarregamos toda a nossa indignação.
Aliás, o texto das jornalistas Gil Alessi e Regiane Oliveira discorreu muito bem sobre a tal da controvérsia, além disso, sintetizou em um parágrafo o passado indigesto da história do nosso país:
Porteiros, assim como empregadas domésticas, são categorias que remontam os tempos da escravidão, onde o servir era considerado um trabalho desonroso pelos brancos. Cabia aos escravos. São alguns desses herdeiros que conseguiram com o estudo mudar um destino quase predeterminado e reescrevem a história de suas famílias.
Não tenho bola de cristal para premeditar os próximos anos do novo governo, seus erros ou acertos, mas que o discurso de Silvio de Almeida me trouxe um alento é inegável. Aliás acompanho a brilhante trajetória deste advogado, filósofo, professor, intelectual negro, que tem servido de inspiração para tantas pessoas aqui e fora do Brasil. Sem dúvida, o acesso à educação, à saúde, à inclusão social e econômica, bem como a representatividade são pontos importantes para o desenvolvimento de qualquer cidadão e cidadã, e da sociedade como um todo, rumo a um ambiente onde a democracia tenha o seu real lugar.
Não posso deixar de trazer aqui algumas das minhas lembranças infantis que compartilho com os leitores. Uma dessas recordações me remete ao período ao período da alfabetização no início da década de 1980. Silvio de Almeida confessou que sofreu com o primeiro impacto com o racismo na escola primária, quando a professora primária lhe tirou o gorro, apesar do intenso frio do inverno paulista, pois para ela aquilo remetia a vestimenta de um “suposto bandido”, aquela situação o transformou. A sua fala, na entrevista do podcast do rapper Mano Brown, me fez me recordar de algumas situações marcantes na minha infância como a preocupação com o meu cabelo sempre escovado e liso, trançado ou de rabo de cavalo, e as diversas tentativas de afinar o meu nariz com os dedos das mãos. O racismo deixou marcas profundas em muitas pessoas no nosso país, nas nossas famílias e amigos, muitos estão aí ao nosso lado, como observo no texto do querido pedagogo e antropólogo Diorge Santos, que escreveu um texto brilhante sobre o tema. O caminhar contra tudo isso é longo.
Em 2020, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística constatou que 54% da população é negra, mas cadê a tal da representatividade? Intelectuais negros como Guerreiro Ramos e Abdias do Nascimento, entre tantos outros do movimento negro, lutaram contra a ideia da “democracia racial”, e até a esquerda durante muitas décadas ignorou a discriminação racial em solo brasileiro, então, é bom estarmos sempre atentos. Sem dúvida, a situação mudou cerca de 40 anos para cá, e com razão. E, assim, me manterei sempre atenta e desconfortável, pois o desconforto é necessário, pois suscita emoções e mobiliza questionamentos, e a esperança é “o sonho do homem acordado”, de acordo com a citação atribuída ao filosofo grego Aristóteles. Mas, sinto vibrando no ar a esperança, assim como bem cantou o mestre Cartola:
Sinto vibrando no ar E sei que não é vã A cor da esperança A esperança no amanhã
Amanhã A tristeza vai transformar-se em alegria E o sol vai brilhar no céu de um novo dia Vamos sair pelas ruas, pelas ruas da cidade Peito aberto, cara ao sol da felicidade
E no canto de amor assim Sempre vão surgir em mim Novas fantasias
Sinto vibrando no ar E sei que não é vã A cor da esperança A esperança do amanhã
Amanhã A tristeza vai transformar-se em alegria E o sol vai brilhar no céu de um novo dia Vamos sair pelas ruas, pelas ruas da cidade Peito aberto, cara ao sol da felicidade
E no canto de amor assim Sempre vão surgir em mim Novas fantasias
Sinto vibrando no ar E sei que não é vã A cor da esperança A esperança do amanhã Do amanhã, do amanhã
Referências:
ALESSI, Gil; OLIVEIRA, Regiane. Os filhos de porteiros que chegaram à universidade têm um orgulho que o ministro Paulo Guedes ignora. El País, Brasil, 30 abr. 2021. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2021-04-30/os-filhos-de-porteiros-que-chegaram-a-universidade-tem-um-orgulho-que-o-ministro-paulo-guedes-ignora.html Acesso em: 04 jan. 2023.
Cartola; Roberto de Nascimento. A cor da esperança. Rádio Batuta, Instituto Moreira Salles. Disponível em: https://radiobatuta.ims.com.br/playlists/cartola-sao-muitos Acesso em: 05 jan. 2023.
CARRIS, Luciene; SENA, André. Como eu te incomodo? Dois filhos de porteiros e suas trajetórias universitárias. Disponível em: https://youtu.be/pG8C1s4osBw Acesso em: 04 jan. 2023.
Discurso de Silvio Almeida viraliza: 'Vocês são valiosos para nós'. Estado de Minas Gerais, Política, 03 de jan. 2023. Disponível em: https://www.em.com.br/app/noticia/politica/2023/01/03/interna_politica,1440530/discurso-de-silvio-almeida-viraliza-voces-sao-valiosos-para-nos.shtml Acesso em: 04 jan. 2023.
Mano Brown recebe Silvio de Almeida, São Paulo, nov. 2022, Mano a Mano Podcast. Disponível em: https://open.spotify.com/episode/5VaSZbTi8pkNuht3LvtOLJ?si=ukZPDZbUQuC621jJ3z1Lsw Acesso em: 20 dez. 2022.
SANTOS, Diorge. A cor da solidão: perspectivas de corpos negros na academia e para além dela. Box Digital de Humanidades, 01 jan. 2023. Disponível em: https://www.boxdigitaldehumanidades.com/post/a-cor-da-solid%C3%A3o-perspectivas-de-corpos-negros-na-academia-e-para-al%C3%A9m-dela Acesso em: 01 de jan. 2023.
VARGAS CARNEIRO, L. A.; BRIDI, F. R. de S. Políticas públicas de ensino superior no Brasil: um olhar sobre o acesso e a inclusão social. Revista Ibero-Americana de Estudos em Educação, Araraquara, v. 15, n. 1, p. 146–158, 2020. Disponível em: https://periodicos.fclar.unesp.br/iberoamericana/article/view/12059 Acesso em: 3 jan. 2023.
VENTURA, Manoel. Guedes diz que dólar alto é bom: ‘empregada doméstica estava indo para Disney, uma festa danada’. Jornal O Globo, Economia, 12 fev. 2020. Disponível em: https://oglobo.globo.com/economia/guedes-diz-que-dolar-alto-bom-empregada-domestica-estava-indo-para-disney-uma-festa-danada-24245365 Acesso em: 04 jan. 2023.
*Luciene Carris é Historiadora (UERJ).
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